quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

SE EU TIVESSE MAIS TEMPO...

Se eu tivesse mais tempo, havia de o gastar a contemplar a natureza. É tão bela e encantadora, tão misteriosa e sublime! Repetiria vezes sem conta que não fui eu que a criei, nem sequer sou autor de uma simples raiz ou de um qualquer minúsculo grão de areia; que não fui eu que a iluminei com o sol nem pus em movimento o seu dinamismo gerativo e regenerativo. Quando nasci, já tudo existia. E a mesma atitude havia de ter ao ver a mesma natureza agora refeita pela acção humana e recriada pela capacidade transformadora do homem. Seria uma atitude de admiração e maravilha tanto perante o universo como perante o homem e suas criações. Dar-me-ia conta da coragem que conquista a natureza, os montes, os mares; do génio artístico que se expressa na música, na poesia, na pintura, na dança, na literatura, na arquitectura; do feitiço da amizade e do amor, dos olhos inocentes de uma criança, de uma acção nobre, do sacrifício da própria vida por uma grande causa; do valor e do mistério que se revela na existência humana e de que a experiência religiosa faz eco. A admiração exprime de certo modo essa atitude contemplativa, profundamente mortificada na civilização industrial, mas nunca extinta por completo, pois antes da explosão demográfica provocada pela industrialização, era este parâmetro que se impunha à reflexão filosófica – orientada para o reconhecimento da grandeza e do mistério que há no homem.

Se eu tivesse mais tempo, havia de me pôr a reflectir sobre as situações humanas que transpiram frustração e desilusão nascidas do facto de que muitos homens vivem absortos nas suas empresas exteriores e na superficialidade de uma vida de massa que se mostra pouco inclinada à reflexão; tais pessoas só entram dentro de si no choque com a realidade, na experiência da frustração, do fracasso ou da derrota. É que... o azar, a falta de sorte, um acidente de viação, a morte dos pais, da esposa ou de um filho, a guerra, o genocídio, os campos de concentração... acordam-nos da dispersão em que vivemos. O fracasso dos próprios projectos, a fadiga e a dureza do trabalho, o cansaço de viver, a procura de uma felicidade verdadeira e de uma paz estável, a solidão, o abandono de tantos amigos... numa palavra, o contraste entre o que uma pessoa é e o que gostaria ou deveria ser para se realizar plenamente, são outras tantas experiências que nos convidam a reflectir e a suscitar as interrogações de sempre: Quem sou eu? Para que nasci? Porquê acontecer-me isto, a mim? – interrogações que se impõem independentemente do credo religioso ou metafísico a que se aderiu. Encontram-se nas velhas páginas do livro de Job e incluem-se até nos escritos de qualquer ateu ou agnóstico.

E finalmente havia de me dar conta do negativo e do vazio nascido do facto de que muitos homens pautam a sua vida em conformidade com determinadas visões falsas da vida, sem repararem na falta de dimensões profundas e pessoais que as constituem. Isto verifica-se especialmente nas culturas industrializadas e racionalizadas onde o homem vive alienado, como um número no meio de uma grande massa impessoal que o explora. Outras vezes, corre atrás de valores enganadores, regidos por uma pérfida publicidade. Acontece que tudo isto chega ao ponto em que não só não oferece nenhuma satisfação, como até deixa aparecer o vazio e o nada. A propósito: não será o suicídio o problema antropológico mais sério e mais verdadeiro? O fenómeno da experiência do vazio e do nada é bem a característica de uma civilização dominada pela técnica e pelo funcionalismo, coisas que levam à indiferença ética. É esta experiência do vazio e do nada que se transforma, ainda que negativamente, em protesto contra a civilização que, tendo a obrigação de servir o homem, afoga as suas aspirações mais profundas e mais pessoais.

P. Madureira da Silva

1 comentário:

  1. Toca-me o terceiro parágrafo, enquanto uma realidade imprópria e indesejável: a insatisfação e a insegurança- «o vazio e o nada» - tão negativamente fortalecendo o desânimo e alimentando o desespero, induzem à prática de tristes «protestos», sim, silenciosos que...se eu tivesse mais tempo...dar-me-ia para perguntar à sociedade, à comunidade, à família, por que razão, afinal, não quiseram ter tempo?!...É que «depois» já não dá tempo...
    Obrigada por nos pôr a pensar!

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