quarta-feira, 4 de março de 2009

A DIDACHÉ (c. 70 d. C) E A PRIMITIVA LEGISLAÇÃO ECLESIÁSTICA E LITÚRGICA

COMENTÁRIO AO TEXTO (1ª parte)

Este precioso escrito merece, sem dúvida, uma merecida, embora curta, abordagem teológica (comentário) ao mesmo, circunscrita a alguns temas centrais, sobre os quais nos debruçaremos neste e nos próximos artigos.

As “Duas Vias”

A Didaqué (Did) inicia a sua catequese servindo-se do esquema clássico das chamadas “duas vias”: a via ou caminho da vida (I-IV) e a via ou caminho da morte (V). Este recurso às duas vias ou caminhos, que é utilizado pelo didaquista como método básico para a formação dos catecúmenos, leva consigo a marca de uma concepção grega conhecida de então, pois era utilizado nas sinagogas helenísticas como forma de instruir os prosélitos [1], muito embora o texto tivesse sofrido com o autor do escrito uma forma cristianizada e, por isso mesmo, “adaptada” às exigências da fé cristã.

A forma como estão redigidas estas instruções catequéticas é realmente muito interessante. As regras da moral, que constituem uma espécie de BI do cristão na Igreja e no mundo, são apresentadas a partir da imagem dos dois caminhos (o do bem-vida e o do mal-morte), que o homem é chamado livremente a optar, mas que só um deles (o da vida) o preenche de sentido e o conduz à verdadeira felicidade.

Ora, este esquema já se encontrava também presente, embora com tonalidades algo diferentes, no AT, como se pode verificar nas passagens de Dt 30,15ss (“Coloco hoje diante de ti a vida e o bem, a morte e o mal”…) e de Jr 21,8 (“Coloco diante de vós o caminho da vida e o caminho da morte”) (Cf. ainda Sl 1,1ss).

O caminho da vida consiste efectivamente no amor a Deus e no amor ao próximo e em não fazer aos outros o que não quer que se nos façam. De facto, o amor a Deus e ao próximo era, pois, um resumo feito por Cristo relativamente ao cumprimento dos Dez Mandamentos (Cf. Mt 22,37-39). Logo, o didaquista considerou-o, de facto, a norma fundamental da vida do cristão.

Este caminho da vida, fundado essencialmente no amor a Deus e ao próximo, implica: abster-se do homicídio, do adultério, do roubo, da magia, da feitiçaria, do aborto [2], do perjúrio, da maledicência e da vingança, da duplicidade ou não coerência de pensamentos e palavras, da avareza, da hipocrisia, da malícia e da soberba, do ódio, que deve ser vencido pela correcção amiga e pela oração. Importa aqui salientar a forma como a atitude da correcção fraterna se torna num pilar importante das relações de vida do cristão: “repreenderás uns e rezarás por outros” (II,7), “não farás acepção de pessoa ao corrigir as faltas” (IV,3), “admoestai-vos uns aos outros não com ira mas em paz” (XV,3). Na verdade, todos os comportamentos “anti-sociais” não se coadunam com a novidade e radicalidade da vida cristã. Por esse motivo, o didaquista propõe o remédio: há que evitar tudo o que possa conduzir a estes males e em contrapartida assumir as virtudes, comportamentos e deveres correctos em relação a si mesmo, em relação aos anunciadores da Palavra, em relação aos irmãos na fé, aos pobres, aos filhos, aos servos e aos superiores (Cf. cap.IV).

Por outro lado, o caminho da morte está repleto de maldições e todo o tipo de vícios e pecados. Por esta via da morte e do pecado caminham os perseguidores dos bons, os inimigos da verdade e amantes da mentira, os indiferentes à justiça, os que não desejam o bem mas o mal, os impacientes, ávidos de recompensas (interesseiros) e amantes das coisas vãs, os que não se compadecem com o pobre, antes pelo contrário o oprimem, nem se incomodam com os atribulados e não reconhecem o seu Criador… São, portanto, todos estes pecados que “há que evitá-los”, pois não reflectem o rosto de Cristo e daquele que livre e radicalmente se decidiu a viver à Sua imagem e semelhança.

Era, portanto, este o modo como eram instruídos todos aqueles que se preparavam para abraçar a fé cristã. Isto significa que o didaquista queria deixar bem claro que ser-se cristão não é mesmo nada fácil [3], na medida em que implica adoptar uma forma completamente nova de viver e de dar a vida pelos outros, à maneira de Cristo. Quanta actualidade tem para nós esta magnífica catequese das “Duas Vias”!!!...

Drª. Teresa Pereira

[1] Esta apresentação reflecte, além disso, um enorme paralelismo com os capítulos 18-20 do Pseudo-Barnabé, facto que levou os estudiosos a concluir que quer a Did. quer o Pseudo-Barnabé se teriam servido de uma fonte judaica comum. Na verdade, estes documentos remontam, por vias não coincidentes, a um antecedente judaico que terá assumido a forma de um manual de instrução ética destinado aos prosélitos e que chegou até nós em versão cristianizada, tratando-se por isso de um documento à parte da Did. e que o autor achou por bem nela o inserir.
[2] A Did. é o documento cristão mais antigo a condenar a prática do aborto.
[3] Fácil é viver, pelo contrário, à maneira dos pagãos…

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