quarta-feira, 18 de março de 2009

A DIDACHÉ (c. 70 d. C) E A PRIMITIVA LEGISLAÇÃO ECLESIÁSTICA E LITÚRGICA

COMENTÁRIO AO TEXTO (3ª parte)

Eucaristia e Igreja

O “coração” da teologia da Did. é, sem dúvida, o que se refere à eucaristia e, relacionada com ela, à implícita concepção de catolicidade da Igreja [1]. Pelo que se pode concluir da leitura atenta do documento, podemos realmente afirmar que o conceito de “Igreja” possui na Did. um sentido de universalidade, na medida em que no primeiro plano da consciência cristã subsiste a ideia de uma Igreja que abraça o mundo inteiro.

Aqui, o termo “ekklesia” não significa apenas a congregação ou assembleia dos crentes reunidos para rezar, mas acima de tudo o novo Povo de Deus que um dia se estabelecerá definitivamente no Reino de Deus. É a comunidade dos santos, pois ser cristão equivale a ser santo (Cf. X,6).

Os títulos de una e santa acentuam-se de um modo especial no documento, quando a Igreja se encontra relacionada com o sacramento da eucaristia, sendo de facto o pão eucarístico o verdadeiro e mais expressivo símbolo da unidade, pois que a partir de uma multiplicidade de grãos se converteu um só pão, assim a Igreja reunida desde os confins da terra no Reino preparado pelo Senhor (Cf. IX,4; 10,5).

De facto, a eucaristia aparece intimamente unida à Igreja e vice-versa. Nada melhor, pois, do que analisar os preciosos excertos desta eclesiologia tão profundamente eucarística e desta teologia eucarística tão marcadamente eclesial da Did. Vejamos, em primeiro lugar, as orações “eucarísticas” dos capítulos IX e X que, embora dependendo ainda muito dos rituais judaicos, assumiam já um significado e contexto novos.

Logo na primeira bênção eucarística sobre o cálice, o didaquista reza assim: « Pai nosso, nós Te damos graças pela santa vinha de David, Teu servo, vinha que nos revelaste por Teu servo Jesus» (IX,2).

Esta oração encontra-se, sem dúvida, repleta de ressonâncias bíblicas. No AT, a vinha do Senhor é a Casa de Israel (Cf. Is 5,1ss; Nm 13,20-26; Dt 32,32-33; Eclo 24,17; Is 27,2-5; Sl 80,9-19; Os 14,5-10; Am 9,13-15...) e na tradição cristã fala-se de uma nova vinha (Cf. Mt 20,1-16; 21,28-46) radicada em Jesus, a verdadeira vide (Jo,15,1). Não é, pois, de estranhar que a bênção sobre o cálice evoque a revelação e chegada do vinho novo que é Cristo, O qual vem nutrir a Igreja da “novidade” da alegria e da vida divina.

A profunda eclesiologia eucarística destaca-se ainda com maior clareza na oração de bênção sobre o pão: « Pai nosso, nós Te damos graças pela vida e o conhecimento, que nos revelaste por Jesus Teu servo. Como este pão partido, antes semeado sobre as colinas, uma vez recolhido se tornou um, assim a Igreja seja reunida das extremidades da terra no Teu reino. Porque Tua é a glória e o poder, por meio de Jesus Cristo, nos séculos» (IX,3-4).

A unidade do pão é símbolo da unidade da Igreja, dispersa sobre a terra, embora orientada para a sua reunião no reino de Deus. A eucaristia torna-se aqui, pois, imagem da unidade e universalidade da Igreja, na bela e profunda expressão que acabámos de transcrever, e Jesus Cristo é a fonte da revelação desta vida e do conhecimento perfeito do mistério divino. É curioso, de facto, salientar que subsiste nestes excertos uma cristologia radicada no título e imagem bíblica do Servo de Iahvé (Cf. Is 49,1-6;50,4-9; 53,1-12...), na medida em que é Ele que dá a vida e se dá em alimento de vida que jorra para a eternidade.

É precisamente este último aspecto que é claramente evocado na oração eucarística do capítulo X,3, deste modo: « Tu, Senhor Omnipotente [...] a nós, porém, gratificaste-nos com um alimento e bebida espirituais, para a vida eterna, por Jesus Teu Filho» . A eucaristia é aqui designada de alimento e bebida espiritual destinada à vida eterna. Não se equipara, portanto, ao alimento e à bebida que saciam o corpo e que também são motivo de acção de graças, embora perecíveis; a eucaristia é, ao contrário, o alimento por excelência...

No contexto desta mesma oração, ressalta-se a eclesiologia eucarística de X,5, com estas palavras:« Recorda-Te, Senhor, da Tua Igreja, para que a libertes de todo o mal e a aperfeiçoes no Teu Amor. E reúne-a desde os quatro ventos, esta Igreja santificada, no Teu reino, que preparaste para ela, porque Teu é o poder e a glória, pelos séculos».

Nesta passagem encontramos, na verdade, aspectos teológicos muito importantes. Um deles tem a ver com a santidade da Igreja. Robustecida com o pão eucarístico, a Igreja é chamada ao aperfeiçoamento no Amor (= santidade) e, assim santificada, tenderá, como dom de Deus, à construção da unidade. A nota da universalidade e unidade eclesiais encontra-se presente na expressão “desde os quatro ventos”. A Igreja espalhada pelo mundo é reunida pelo Senhor e predestinada à eternidade: “no Teu reino, que preparaste para ela”. Trata-se, pois, de uma comunidade de origem divina, cuja missão é construir o reino e se orientar definitivamente para ele.

No que diz respeito à assembleia dominical dos capítulos XIV e XV, a eucaristia adquire aqui a designação de “sacrifício puro”.

A dimensão sacrificial do alimento eucarístico é fundamentada a partir da fusão dos versículos 1,11.14 de Malaquias que ressaltam, em tom eminentemente profético, o carácter contínuo e universal do mistério eucarístico: “em todo o lugar e tempo” (XV,1).

Tanto nas preces eucarísticas do capítulo X como na descrição da assembleia dominical do capítulo XIV é ressaltada a necessidade de uma purificação dos pecados, através da confissão dos mesmos:

«Quem é santo, venha. Quem não é, faça penitência » (X,6);
«No dia dominical do Senhor reuni-vos, parti o pão e dai graças, depois de ter confessado os vossos pecados para que o vosso sacrifício seja puro» (XIV,1) e «Todo o que tiver algum diferendo com o seu próximo não se junte a vós, antes que se reconciliem, para que o vosso sacrifício se não contamine» (XIV,2).

Não restam, pois, quaisquer dúvidas que para participar dignamente da celebração sacramental há que possuir um coração verdadeiramente puro e reconciliado para que, do mesmo modo, a dimensão sacrificial da eucaristia possa também ela ser efectivamente pura e, portanto, verdadeira.

Drª. Teresa Pereira
[1] O conceito de catolicidade aparecerá com maior clareza nas Cartas de Inácio de Antioquia, que analisaremos também a seu tempo.

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