quarta-feira, 25 de março de 2009

A DIDACHÉ (c. 70 d. C) E A PRIMITIVA LEGISLAÇÃO ECLESIÁSTICA E LITÚRGICA

COMENTÁRIO AO TEXTO (4ª parte)

Para concluirmos a análise deste precioso escrito da catequese sub-apostólica, destacaremos ainda os seguintes temas:

Caridade e assistência social

São muito interessantes os princípios de caridade e assistência social expressos na Did (XII,2-5). O didaquista recomenda, com veemência, a prática da esmola, ao mesmo tempo que insiste na obrigação da pessoa ganhar a vida através do seu trabalho. O dever de socorrer os necessitados e os demais de-pende, portanto, da sua incapacidade para trabalhar. A prática da esmola não poderá tornar-se, contudo, um gesto de mero assistencialismo ou como forma de desconto dos pecados, mas que “seja conforme ao evangelho do Senhor” (XV,4), ou seja, completamente desinteressada.

Constituição hierárquica da Igreja

Muito próxima da organização hierárquica do NT, mais concretamente do rol ministerial descrito em 1 Co 12,28ss, a Did. apresenta duas classes de ministros: por um lado, aqueles que desempenham um ministério fixo nas co-munidades locais (“episkopoi” e “diakonoi”) – não se percebendo claramente se estes “episkopoi” eram presbíteros ou bispos- e os que desempenham um mi-nistério itinerante ou carismático - apóstolos (doutores/mestres) e profetas.

De facto, para além de uma hierarquia local, que era muito bem acolhida e previamente bem seleccionada e eleita pela própria comunidade (Cf. XV,1-2), desempenhavam um papel muito mais importante os ministros itinerantes, em especial os profetas, aos quais lhes eram oferecidas as primícias da terra (XIII,3-7), podendo mesmo exercer o ministério litúrgico de “celebrar a eucaristia” (Cf. X,7), em virtude de serem para a comunidade os “sumos sacerdotes” (XIII,3). Do mesmo modo e em virtude possuírem uma enorme estima entre a comunidade, não poderiam ser julgados por ela (Cf. XI,7.11). Na verdade, a actividade profética possuía uma enorme importância nas comunidades onde o documento nasceu. A função destes profetas consistia na prestação de ensinamentos, admoestações e propostas concretas para a vida das comunidades. A importância destes ministros carismáticos advinha do facto dos mesmos serem provenientes de uma área onde circulava a tradição de Jesus de forma fluida (refugiados da Galileia).

Contudo, havia que estar atento aos sinais de autenticidade destes mi-nistros itinerantes, pois que parecia ser vulgar a intromissão de falsos profetas ou charlatães que querendo viver às custas dos outros se disfarçavam de ministros da Palavra. A Did. não esquece, pois, a importância e o apelo ao discernimento do verdadeiro e do falso ministro (Cf. XI).

Em suma, apesar de não encontramos ainda na Did. aquela organização que aparece já na Carta aos Coríntios de Clemente de Roma e muito mais claramente bem definida nas Cartas de Inácio de Antioquia, não quer dizer que a comunidade não possuísse uma estratificação hierárquica. Temos, pois, que ter bem presente que a constituição e evolução hierárquicas estavam ainda no começo de um longo processo.

Escatologia

As acentuações escatológicas são também particularmente importantes na Did., aparecendo uma ou outra vez na oração eucarística com estas pala-vras : «Venha a Tua graça e passe este mundo», «Maranatha, Amén”»(X,6), e adornando por completo o último capítulo do documento (XVI). Este capítulo não só indica os sinais da parusia (última vinda de Cristo) como os da ressurreição dos mortos. Em tom eminentemente profético e apocalíptico, o didaquista antevê dias maus para a Igreja [1] e para o mundo. Contudo, e apesar de muitos se escandalizarem e perderem, os que perseverarem na fé serão salvos. Daí que o apelo do “vigiai pois não sabeis nem o dia nem a hora”, proferido pelo próprio Cristo especialmente na parábola dez virgens (Cf. Mt 25,1-13 ), seja aqui reformulado deste modo: « Vigiai sobre a vossa vida; não se extingam as vossas lâmpadas, nem se desapertem os vossos rins, mas estai sempre preparados, pois desconheceis a hora em que Nosso Senhor vem» (XVI,1).

Isto quer dizer que a vida cristã tem que possuir, pois, uma marca de exigência escatológica, no sentido de que o fim último da humanidade não se prende com as realidades terrenas, mas que se orienta e realiza em plenitude nas realidades celeste. Foi sempre esta a certeza da fé cristã, ao saber que somos meros estrangeiros e peregrinos nesta Terra, pois a pátria que procu-ramos e aspiramos é a celeste, para onde devemos caminhar (Cf. Hb 11,13-16).

Drª. Teresa Pereira

[1] Seria já uma antevisão ou mesmo já alusão à tormentosa época das perseguições aos cristãos?…

Sem comentários:

Enviar um comentário