Há coisas que facilmente perdem a força que as anima pelo facto de se tornarem comuns, banais, de toda a gente. Na memória dos povos, essas «coisas», antes de se terem tornado comuns, foram ideais a conquistar e objectivos a alcançar. Se hoje, na cultura ocidentalizada, os conceitos de pessoa, de democracia e de direitos humanos são comuns, – pois já não precisamos de pensar neles como ideais a atingir, mas tão somente como realidades já conseguidas – o mesmo ainda não acontece na mentalidade asiática, africana e sul-americana e nas políticas de cariz totalitarista. Foi preciso derramar-se muito sangue para que tais conceitos se tornassem comuns na Europa. Neste processo, apesar de o cristianismo lhe servir de alicerce e ter elevado a pessoa ao nível de valor supremo, foi preciso esperar pela Revolução francesa (1789) para que esse valor se democratizasse, se subdividisse nos parâmetros da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Estas três facetas exprimem política e socialmente o referido conceito de dignidade: o parâmetro da fraternidade despoletou a segurança social; o da igualdade despoletou o sentido de participação comum; e o da liberdade despoletou o exercício da acção política – coisas óptimas, apesar de sujeitas às intempéries ideológicas dos partidos que «usam» o poder. Na linha da dignidade humana, o processo de desenvolvimento foi também alvo de filosofias humanistas, dentro das quais é oportuno citar Kant, cujo imperativo categórico comporta a exigência do agir «de tal modo que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim e não meramente como um meio».
Mas foi na idade contemporânea, concretamente em meados do século XX que, com maior incidência, se insistiu na dignidade do homem. A Europa tinha-se destruído com duas grandes guerras; e era necessário recompor o valor da pessoa. A Declaração dos Direitos Humanos de 10 de Dezembro de 1948 (ONU), logo nos primeiros capítulos, contempla a liberdade e a igualdade de comportamento fraternal e a afirmação de que toda a pessoa tem, face ao poder instituído, todos os direitos e liberdades aí proclamados. É possível que o espírito que informou tais declarações fosse ainda demasiado individualista, como consequência das circunstâncias históricas e sociopolíticas a que a sua proclamação corresponde. Mas a evolução normal foi para o personalismo, onde a dignidade humana é elevada à máxima dignidade. Como «gato escaldado de água fria tem medo», eu deixo no ar a minha inquietação: porque é que muitos Homens de hoje, «iguais e diferentes», continuam a não ser tratados como pessoas?
P. Madureira da Silva
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