quinta-feira, 5 de março de 2009

A ILUSÃO DO CONTRADITÓRIO

Na guerra entre as normas morais – representadas pela tradição culturalmente cristã – e os gostos individuais – representados pelos atractivos e tendências actuais –, a tradição perde. Pondo em confronto, de um lado, os valores espirituais (lógicos, éticos, estéticos e religiosos) que manifestam a excelência da consciência sobre o corpo e, do outro, os valores do corpo, materializados na satisfação dos apetites, na corporación estetica (ginásios, alimentos light, clínicas) e na preponderância do querer sobre o dever, os valores do corpo vencem. É uma guerra antiga e Nietzsche não é a personagem mais inocente neste confronto. Coube-lhe a responsabilidade de ter dado rosto e voz às doutrinas voluntaristas e às ideologias ateias que o século XIX desenterrou e promoveu. O «super-homem» inventado por ele não é nada um super-homem: é o mais comum e normal dos homens, que se diz possuidor de uma consciência «científica» (preferencialmente amoral), de religiosidade intimista (sem espiritualidade e sem Deus), sem outro sentido do bem e do mal que não seja o que ele decide que seja, sem outro sentido de vida que não seja a usufruição máxima e rápida do que o seu individualismo espevita, com muitos direitos e poucos deveres, numa ânsia descontrolada de auto-promoção e auto-satisfação. Este super-homem voluntarista e caprichoso – nada super e muito pouco homem – tornou-se deus de si mesmo. Assumiu a configuração mitológica de Dionísio (deus do vinho, das pândegas, das orgias e do «faz o que te apetece») em oposição a Apolo (deus da inteligência e do domínio da alma sobre o corpo, do «faz o que deves»).

Actualmente, vive-se a ilusão do contraditório. Apela-se para o social, mas vive-se o individual. Exige-se a tolerância, mas impõe-se o ponto de vista. Quer-se a dignidade, mas espevita-se a licenciosidade. E a redenção – que é a obra da libertação do mundo através da luta contra todas as servidões – põe-se na gaveta das coisas inúteis e esquisitas. Mistifica-se a ideia de pecado e não se tem em linha de conta as respectivas consequências pessoais, sociais e cósmicas. Com uma agravante: espezinha-se tudo o que seja abnegação, domínio de si, sacrifício, cedência, humildade, esforço, virtude. Hoje, mesmo que algumas destas virtudes se realizem, é com o objectivo da auto-satisfação, da auto-promoção, mais à custa dos outros do que de si mesmo. A tradicional doutrina moral sobre os vícios de que o coração humano é pródigo, foi aniquilada pelas ideologias e doutrinas sem moral que desconsideram o pecado, alijam a responsabilidade, esfarelam a culpabilização e metem no mesmo saco o querer, o poder, o apetecer, o ser lícito, o usufruir – tudo sem hierarquia. Deixou de se pôr o acento no «bem moral» para o pôr no «bem estético», nos gostos caprichosos, nos «acho’s» opinativos e no «é assim» impositivo.

Entretanto... mesmo que a nossa teimosia o queira negar, continua a ser verdade que o elemento material do pecado é a rebelião da carne contra o espírito, das tendências vitais contra a consciência moral. Continua a ser verdade que não param de agir as duas desordens instintivas no homem: o orgulho e o desejo dos prazeres e, naturalmente, o orgulho vence. Vencendo, passam a ser considerados “normais” os desordenados deleites carnais e o anelo em gozá-los, muito para além do instinto natural da conservação do indivíduo e da espécie. Do mesmo orgulho nasce a preguiça, desenvolve-se a luxúria e estimula-se a intemperança no comer, no beber e nas diversões. Aumenta o apetite dos bens exteriores (riqueza, fausto, luxo em geral). E tudo ganha corpo na ambição, na jactância e na presunção, descambando em ódios, impaciências, rancor, impropérios e maledicências. E tudo sem culpabilização, que na ética sem deveres não pode haver sentimento de culpa! Assim, perde-se o bom senso...

P. Madureira da Silva

1 comentário:

  1. Perder o bom senso faz-me lembrar uma casa às escuras...Por momentos, se a luz se apagar os acidentes podem acontecer...Tropeçamos, esbarramos, desviamo-nos mas, se não estivermos sós, facilmente somos acompanhados nestas dificuldades e estas são superadas. Que bom! Na sociedade actual, há "brilhantes" manifestações de "quero, posso e tenho" que, exibindo um "apagão", nada momentâneo, potenciam negros episódios familiares e sociais. Mais ainda, quando os "iluminados", de hoje, pensam poder sobreviver orgulhosamente ...sós. Que pena!
    A escuridão é contraditória...

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