quinta-feira, 2 de abril de 2009

FRUIÇÃO DA VIDA

Sempre houve crises e sempre houve milhões de famílias a sofrer as consequências negativas que as crises criavam. Eram crises laborais, económicas e éticas, com o mesmo pendor negativo: atingir as pessoas mais desprotegidas. Todas passavam ao lado das preocupações das classes média e alta. As graves discrepâncias sociais eram remetidas para o saco do esquecimento. Até que... se virou o feitiço contra o feiticeiro. A classe média foi também atingida económica e laboralmente e a classe alta viu estrangulados os rendimentos financeiros que os gestores da banca souberam corromper. Não admira, pois, que a frase mais solenemente repetida seja que tudo está em crise. Estão em crise as instituições sociais, a confiança mútua, a cidadania, a segurança, os direitos humanos, os empregos, as famílias, os créditos e até os débitos. Nada e ninguém escapa. O liberalismo selvagem e o progresso científico-tecnológico, – que não levam na devida conta as dimensões éticas –, produziram tudo isto, na medida em que incentivaram o desfrutamento de bens supérfluos e criaram a ideia de que, sem esse desfrutamento, a vida não presta. Imediatamente se presumiu que o progresso tem de levar inevitavelmente à fruição de todas as vantagens que dele advêm. E, sem outras delongas, deu-se ao termo «vantagens» o sentido de facilitismos, fins-de-semana, férias, prazer de todos os feitios e tamanhos, boa comida e melhor bebida, passeios. Porque as dificuldades e as complicações prejudicam tais vantagens, então há que evitar os estorvos e desfrutar à brava o agradável da vida.

Por soar a cansaço, até é incomodativo ouvir o tom constrangedor com que se diz «bom dia» no início de uma semana de trabalho; mas é muito giro ouvir as pessoas a despedirem-se à sexta-feira: «bom fim-de-semana»! [Viva o descanso, que trabalhar faz calos!]. Fruto do progresso, inventam-se, mostram-se, propagam-se e impõem-se imensos aliciamentos para se viver dessa maneira, como se a única forma de se estar em dia fosse desfrutar dos proveitos que o progresso traz. A indústria «da noite», as publicidades turísticas e os interesses económicos fornecem minuciosamente as informações necessárias. Os antigos filósofos chamavam cinismo a esse escorropichar a última gota da garrafa do prazer, que o mesmo é dizer, aproveitar o mais possível e com o máximo de intensidade todos os minutos de «descongestionamento» que a vida oferece! Anda por aí muito cinismo! Veja-se a pressa em programar com muita antecedência as férias, os fins-de-semana, gaste-se muito ou pouco, que o que importa é fugir ao stress. Até parece que o desfrute da vida é o único objectivo a que se há-de reconhecer valor... e que este valor é tanto mais alto quanto mais está em ligação com o entretenimento, as farras e o “esquecer problemas”. E nem no meio de tanta crise se muda a perspectiva!

Sendo um conceito antigo, hoje o «desfrute» tornou-se tema comum. Por quererem desfrutar até ao máximo, há famílias inteiras que não encaram as dificuldades; contornam-nas simplesmente. Neste contexto, deparo-me com duas tendências sociais, de pendor egoísta, merecedoras de reparo por serem negativas. A primeira reza que, para gozar a vida, é preciso evitar tudo quanto tem cara de estorvo. Como o principal estorvo são os filhos, há que evitá-los! É que são embaraçantes! Que maçada! Prendem-nos à casa, tiram-nos a liberdade, estorvam o sono e o descanso, prejudicam os passeios, as saídas furtivas e as outras. Que prisão! Se não forem os avós a dar uma mãozinha, é o cabo dos trabalhos! (Por sorte, para estas coisas, há sempre os avós). A segunda propõe que, para gozar a vida, nada melhor que imitar o que os outros fazem – que isso de eles terem um estatuto superior ao nosso, fazerem-nos inveja pelas férias que tiveram e pelos lugares paradisíacos por onde andaram... e nós não, não dá! Estas duas formas de pensar e agir tornam as famílias aburguesadas, consumistas e comodistas, para quem buscar o bem perdeu sentido, passar bem ganhou primazia e fazer o bem... é só se daí advierem vantagens. E, para nosso azar, as palavras amor, liberdade, dom, pessoa – que as alicerçam – estão a perder na prática o que significam em teoria.

P. Madureira da Silva

1 comentário:

  1. É certo que a inveja atrofia, a vaidade ridiculariza e o egoísmo empobrece...qualquer indivíduo.
    Na ausência do bom-senso, qualquer excesso é «desagradável» de ver, de ouvir e de sentir. Vivam os FELIZES que continuam a defender e a viver o AMOR - e, por inerência, todos os outros valores que o tornam PESSOA!
    E quando os encontramos...que bom! A sério!!!

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