terça-feira, 6 de outubro de 2009

Inácio de Antioquia (c.110) e a unidade e catolicidade da Igreja

(Introdução-3ª parte)

Continuando a nossa introdução à vida e obra de Santo Inácio de Antioquia, centramo-nos hoje no seu contexto sócio-eclesial, a fim de melhor entendermos o conteúdo dos seus escritos.

Na verdade, o teor das Cartas de Inácio compreende-se tendo em conta o ambiente ou contexto sócio-eclesial no qual se move o bispo de Antioquia. Tal contexto prende-se, sem dúvida, com a existência e proliferação de heresias cristológicas que iam contaminando a doutrina e a vida da própria Igreja. E que heresias eram essas contra as quais Inácio procurou lutar “com unhas e dentes”?

Por um lado, a seita dos judaizantes, expressão do judeo-cristianismo [1], e que contaminava a fé com elementos (ritos e práticas) do judaísmo e, por outro, o docetismo, enquanto doutrina gnóstica surgida nos finais do século I no seio da Igreja e que afirmava que Jesus Cristo tinha uma carne aparente e, portanto, não corpórea ou real. A justificação consistia em que a matéria era algo intrinsecamente mau, pelo que Jesus Cristo só podia ter um corpo aparente. A doutrina opunha-se, pois, quer à encarnação, quer à morte e ressurreição de Cristo. O docetismo (do verbo grego dokein=parecer) pode, pois, considerar-se como a primeira tentativa teórica de eliminar o escândalo da encarnação e paixão, sendo, na especulação judaico-cristã, uma antecipação do horror e condenação declarada da matéria e da carne que iria caracterizar todo o gnosticismo posterior.

Como se pode ver, o centro da especulação radicava na pessoa e no mistério de Cristo. Porque, a partir de uma lógica humana, como se poderia imaginar um Deus-Homem, gerado primeiramente da eternidade de Deus Pai e nascido depois no tempo a partir de uma virgem mãe, em carne humana? Foi este, de facto, o primeiro problema que se colocou à mente cristã dos primeiros séculos, eco do escândalo e loucura da cruz para judeus e gregos...
Na fidelidade à tradição apostólica, tal como se pode verificar pela leitura atenta das suas Cartas, Inácio de Antioquia vai precisamente relevar a novidade da pessoa e obra de Jesus enquanto Messias e Filho de Deus (frente aos judaizantes) e como verdadeiro homem carnal, nascido de linhagem humana, a partir de Maria Virgem (frente aos docetas). Trata-se, pois, da primeira tentativa pós-apostólica de conciliação entre a divindade e humanidade de Cristo.

Drª. Teresa Pereira

[1] Segundo J. DANIÉLOU, in Théologie du judéo-Christianisme (Paris, Desclée & Cie 1958 ) 17-19, entende-se por judeo-cristianismo 1º - Em primeiro lugar pode ter a ver com a corrente religiosa professada pelos judeus que reconhecem Cristo como um profeta ou messias, mas não acreditam que seja o Filho de Deus. Seria assim uma classe intermédia entre judeus e cristãos, dando origem a seitas heterodoxas e sincretistas; 2º - Por outro lado, significa a fé cristã, professada pela comunidade cristã de Jerusalém, orientada pelo apóstolo Tiago e em que os seus membros se mantêm fiéis a determinados costumes judaicos, sem no entanto os imporem aos cristãos vindos do paganismo, ainda que acreditem na messianidade de Jesus; 3º- Por último, compreende-se como uma corrente de pensamento própria do Cristianismo que, muito embora desligada das práticas judaicas, se serve e se expressa de acordo com uma linguagem ou aspectos estruturais do pensamento judeu. Esta forma global de expressar o pensamento poderia abarcar tanto os cristãos vindos do judaísmo, como os pagãos convertidos. Neste caso, os Padres das Igreja dos primeiros dois séculos manifestam muitas influências judeo-cristãs no seu pensamento, como é o caso particular do Pseudo-Barnabé e do Pastor de Hermas.
Dr.ª Teresa Pereira

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