quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Também eu tenho um sonho

O povo diz que «quem tem amigos não morre na cadeia». E di-lo porque sabe que quem vive entre amigos e deles é amigo, com eles faz comunidade. Sabe que os amigos se ajudam, que todos pensam em todos, todos partilham. Entre amigos, a solidariedade torna-se uma realidade. Religiosamente, é a isso que se chama caridade, na pobreza. Esta caridade na pobreza leva a que cada um se sinta responsável por quem vive a seu lado. O apóstolo Tiago (há dois mil anos!) dizia que o cristianismo, marcado pela caridade na pobreza, é a religião dos pobres, dos necessitados, dos órfãos, das viúvas. Os cristãos serão aqueles cuja religião é como uma religião de crianças, de pequeninos, de necessitados – de todos os que proclamam que só Deus é muito grande. Paulo escrevia aos Coríntios dizendo-lhes: “mesmo que eu distribua todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo às chamas, se não tiver caridade nada sou”, porque a caridade – bem diferente da filantropia humanitária e dos subsídios exigidos – não está em dar o que nos sobra mas em partilhar o que nos faz falta. Sem esta dimensão, não saberíamos se estávamos perante ricos pródigos e esbanjadores, se perante pobres generosos. É possível que, em ambiente religioso, a partilha nunca tenha sido uma realidade a 100%, pois a dificuldade em abrir os cordões à bolsa e o coração aos mais necessitados, – sem estar à espera de gratidão, – até entre cristãos é coisa bastante rara. Mesmo assim, acredito que seja possível.

Porque acredito que é possível, sonho com uma comunidade humana formada naturalmente de irmãos e irmãs, no sentido cristão que estes termos têm. Sonho com uma comunidade em que a amizade une pessoas concretas, apesar de estas poderem ter mentalidade e cultura próprias, qualidades e defeitos específicos, e idades diferentes. Sonho com uma comunidade em que se dá primazia à «pessoa» e não ao dinheiro nem à posição social, nem aos preconceitos que de cada uma temos. Sonho com uma comunidade em que há privilegiados, contanto que estes sejam os pequenos, os pobres, os débeis, os últimos. Sonho com uma comunidade em que se não perde tempo com insinuações, suspeições, maledicências, mas em que se ganha tempo com manifestações de generosidade. Sonho com uma comunidade onde ninguém aprova os preconceitos maldosos que rotulam as pessoas antes de estas se darem a conhecer e onde cada um pode exprimir livremente o seu pensamento e é considerado em função de razões sérias e não de valorações oportunistas. Sonho com uma comunidade em que a confiança mútua é a virtude mais vivida, e a linguagem sincera é a única utilizada. Sonho com uma comunidade em que a única suspeita válida é a de que alguns não recebem a parte de amor a que têm direito. Sonho com uma comunidade em cuja mentalidade comunitária o verbo partilhar se conjuga com o pronome nós e não com o pronome eu; em que o nós acompanha todas as fases da partilha: desde a da renúncia até à da oferta e do dom – por saber que, por detrás do nós comunitário, está um elevado sentimento repleto do amor mais genuíno.

Permitam-me um inciso: bem sabemos que por detrás do eu pode rir-se malignamente o egoísmo mais refinado, mesmo que mascarado de generosidade. É do conhecimento de todos o texto «Quando deres esmola não mandes tocar a trombeta diante de ti como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas para serem glorificados pelos homens [...]. Quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita, para que a tua esmola fique em segredo e teu Pai que conhece o segredo te dê a paga (Mt. 6 2-4)». Vou explicar-me. O nós funciona muito bem quando a mão esquerda não sabe o que faz a mão direita. Mas funciona muito melhor quando as duas mãos colaboram entre si, sabem as duas o que cada uma faz e publicitam o bem que realizam gratuita e generosamente. E, como complemento, que fique bem claro que o «nós» não é assunto exclusivo do cristianismo ou da religião católica. Faz parte de todos os que acreditam na solidariedade humana!

P. Madureira da Silva

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