terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Inácio de Antioquia e a unidade e catolicidade da Igreja.

Análise teológica

IGREJA E EUCARISTIA:
fonte e instrumento de unidade

Sem minimizar os aspectos acima ressaltados, temos contudo de dizer que o cerne da teologia inaciana radica na relação entre a Igreja e a eucaristia e vice-versa. Aqui se encontra, de facto, o “coração” da reflexão teológica e “apologética” do bispo de Antioquia[1].

1- O termo mais frequente e original para designar a Igreja, no dinamismo da eucaristia, é precisamente o de “lugar do sacrifício” (thusiasterion) (Cf. Eph V,2; Tral VII,2; Phil IV). Esta designação é, sem dúvida, especialmente eucarística, na medida em que a eucaristia é o “sacrifício” da Igreja[2]. A ex-pressão thusiasterion não existe no grego clássico, mas aparece já na versão dos LXX para designar precisamente o lugar do sacrifício, altar, pedra de altar. Aparece também no NT, embora raras vezes e em sentido metafórico, como por exemplo na polémica do valor do juramento pelo altar ou o dom que está sobre ele (Cf. Mt 23,18). É Santo Inácio, de facto, que o introduz, pela primeira vez, na linguagem cristã. Por meio dele pretende exprimir que a eucaristia é o sacrifício de acção de graças do cristianismo, com toda a sua amplitude e implicações.

Não existe realmente uma palavra portuguesa que consiga traduzir a densidade doutrinal do vocábulo thusiasterion, muito embora se consiga perceber que o mesmo, apesar de ser um substantivo, adjectiva a essência e a existência da própria Igreja, pois é no seio dela que Cristo – e numa linha de continuidade, os cristãos...- se imola para o mundo.

Analisemos mais de perto os textos onde o termo aparece:
- “Que ninguém se iluda! Se não se encontrar no he entós tou thusiasteriou”, ver-se-á privado do pão de Deus” (Eph V,2). O mesmo será dizer: se alguém não se encontrar “dentro” ou em união com a Igreja, que celebra a eucaristia, não participa do sacrifício redentor de Cristo. Ora, encontrar-se dentro ou no interior do thusiasterion significa participar activamente na oferenda do sacrifício redentor, recebendo, através da comunhão, o pão de Deus, fonte de vida divina. O original é, sem dúvida, mais forte e até mesmo intraduzível!

“Sede solícitos em tomar parte numa só eucaristia, porque uma só é a carne de Nosso Senhor Jesus Cristo, e um o cálice para a união com o seu sangue; um só o thusiasterion“ (Phil IV).

Há a salientar nesta passagem o realismo com que fala da eucaristia, sendo esta a participação no corpo e sangue do senhor. Não havendo, pois, senão uma só eucaristia, um só altar, uma só comunidade. Tratava-se assim de se distanciar dos hereges, os quais se encontravam fora da Igreja e, portanto, fora do altar ou thusiasterion. Daqui se conclui também que a eucaristia é o alicerce e a expressão da unidade da Igreja e da nossa união com Cristo.

Todavia, o dramático desta unidade e união encontra-se relevada numa nova faceta do thusiasterion:
- “O que se encontra dentro do altar é puro; mas o que se encontra fora do altar não é puro isto é, quem pratica alguma coisa sem o bispo, o presbitério e os diáconos, este não está puro e limpo na sua consciência ” (Tral VII,2). Não se pode, pois, viver uma autêntica comunhão eucarística se não se viver uma autêntica sintonia eclesial e vice-versa.

- “Correi todos juntos ao único templo de Deus, ao único altar (thusiasterion), ao único Jesus Cristo, que procede do único Pai, está com Ele e a Ele voltou” (Magn VII,2). Transluzem duas temáticas desta magnífica afirmação do bispo de Antioquia. A primeira em que directamente é referido o thusiasterion – neste caso, com o significado de altar- reflecte o pensamento de S. João, no evangelho (Cf. Jo 8,42; 13,3; 16,27...), pelo que o fundamento último da unidade da Igreja radica na unidade de Cristo com o Pai e esta unidade manifesta-se, constrói-se e fortifica-se na eucaristia. A outra temática, a do templo de Deus, encontra-se bem clara no pensamento paulino (Cf. 1 Co 3,16; 2 Co 6,16): “ Não sabeis que sois templos de Deus e que o Espírito Santo habita em vós?”. A comunidade cristã é, portanto, o verdadeiro e único templo da Nova Aliança. Por esse motivo, Inácio aprofunda e desenvolve melhor esta eclesiologia na Carta aos Efésios IX,2, com estas palavras: “Sois assim todos companheiros de viagem, portadores de Deus e portadores de um templo, portadores de Cristo e portadores de santidade” ou de coisas santas.

Daí se percebe, pois, os vários atributos que dá à Igreja, ao qualificá-la de: santa, amada por Deus, bendita, iluminada, magnífica, etc.

Existe ainda um último significado de que pode revestir-se o termo thusiasterion. Desta vez, de cariz muito pessoal e simbólico. Ao pedir aos romanos que nada façam para impedir o seu martírio manifesta-se totalmente pronto para se oferecer a Deus em libação, como altar (thusiasterion) (Rom II,2), místico do seu sacrifício pessoal. O contexto é o de uma bela metáfora, sem dúvida! Ele que veio da Síria até Roma – do Oriente ao Ocidente - para se ocultar, desaparecer do mundo, como o sol ao pôr-se, mas que, por sua vez, vai para Deus para nele de novo se levantar, na ressurreição. Assim é o mistério da Igreja e o mistério da própria eucaristia! (continua na próxima semana)

Drª. Teresa Pereira

[1] Sobre este aspecto da teologia inaciana segue-se, a partir daqui, e quase à letra, J. O. BRA-GANÇA, A Fracção do Pão- Fármaco da Imortalidade. Pensamento de Stº Inácio de Antioquia, in Eborensia XIII (2000) 257-270.
[2]Já na Didaqué- como vimos- se designava a eucaristia de qusia.

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