quinta-feira, 20 de maio de 2010

Carácter pedagógico da morte

A morte é o mais excelente meio pedagógico para nos exercitarmos na sinceridade e na autenticidade de vida. Diga-se, no entanto, em abono da verdade que, em si mesma, a morte nunca é pedagógica. O que é pedagógico é a nossa condição mortal, ou seja, a certeza de que haveremos de acabar e de que estamos todos os dias a acabar mais um bocadinho até ao último dia; e que esse último dia se vai antecipando através de sinais bem visíveis, como sejam os do sofrimento físico e psíquico, os remorsos e a solidão. A função educativa da morte assenta na certeza de que, quer se queira quer não, somos mesmo mortais. Diferentemente do animal, damo-nos conta de que havemos de morrer e sabemos que caminhamos para o aniquilamento inevitável. A morte é uma certeza espontânea e inata e não um saber neutro e impessoal. Viver na consciência da morte é misturar a ameaça iminente que não perdoa com um prazo que ainda permite reagir e fugir por algum tempo. Mas é totalmente inaceitável considerar a morte do homem como um problema exclusivamente biológico, sob pena de esquecer duas coisas fundamentais: a nossa espiritualidade e a nossa dimensão sociocultural. O corpo não é só biológico: é essencialmente «humano», é presença e lugar da realização humana.

É característica de todos os seres vivos nascerem, crescerem, reproduzirem-se e morrerem. Tudo isto se verifica na passagem efémera no tempo e no espaço terrestre. Os seres humanos não escapam a este processo. Então, que nos ensina a nossa condição mortal? Ensina-nos quatro coisas. Primeira: que, enquanto por cá andamos, é nossa missão criar um mundo cada vez mais humano. Essa missão obriga moralmente. Explico-me: Porque queremos viver dignamente, trabalhamos para atrasar o inevitável. Foi contra a insegurança da existência, permanentemente exposta à morte, que os nossos antepassados criaram as estruturas de uma imensa civilização. Construiu-se um mundo onde é imperioso haver pão para todos, casa, justiça, remédios, possibilidades de cada um se afirmar. Neste mundo, assim construído, cada homem luta contra as enfermidades, as injustiças, as alienações. As suas e as dos outros. Toda a empresa cultural da humanidade é uma luta contra a morte. Segunda: que é relativo o valor dos bens materiais. Porque todos morrem, sem excepção, e ninguém leva consigo os bens deste mundo, a morte induz a reconhecer às coisas mundanas o valor próprio de cada qual e a recusar significados que estas não têm. Concretamente, o valor da vida não pode estar na acumulação de bens para usufruição exclusiva. Não vale a pena serem tomados como absolutos os bens e os valores que são simplesmente relativos. A procura de bens materiais e culturais, a criação de uma civilização humana, o reino do ter e das estruturas em geral, têm sentido se servem para a promoção das pessoas e são usados em favor delas.

Terceira: que todos somos nivelados na mesma prova e desventura e que todas as funções sociais devem ser vividas como um serviço aos outros e não como uma forma de autopromoção nem de «puleiro» para dominar seja quem for. A morte desmascara o egoísmo e a exploração, a vontade de poder e a sede de domínio. Convida-nos a pensar que há lugares para todos, já que ninguém é indispensável na comunidade humana. A morte anula todas as diferenças entre ricos e pobres, entre poderosos e miseráveis. Quarta: que a existência tem um sentido de totalidade e um carácter de prova, isto é, a morte impede retocar ou mudar o sentido que se deu à vida. O que se fez durante a existência está fixado na sua figura definitiva. Quem escolheu, enquanto vivo, um determinado estilo de comportamentos, de atitudes, de acções, já não pode mudar! Com o momento da morte esgotaram-se as últimas possibilidades. Atingiu-se o topo. Já não há uma segunda oportunidade. Só se pode esperar que os vivos possam agir em favor dos mortos, e que o façam pela oração.
P. Madureira da Silva

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