quinta-feira, 24 de junho de 2010

Tradição ocidental

Em tempos que já lá vão, a Igreja católica foi, nesta nossa velha Europa, largamente maioritária e os baptizados abundantemente praticantes. Usando critérios muito próprios, alguns compiladores de factos histórico-religiosos europeus lançam para a ribalta a ideia de que tais tempos foram «tempos de cristandade», dando à palavra cristandade um sentido duvidoso. É verdade que a influência da Igreja estava presente em tudo e não se considerava a hipótese de poder ser de outra maneira. Era-se cristão, voluntariamente ou à força. É por isso que, nesses tempos, o significado mais comum para o termo caridade era o de esmola. Os mais ricos davam aos que menos possuíam, numa obediência aos ditames que a consciência ético-religiosa propunha. Mas essa esmola não significava justiça nem igualdade nem partilha nem comunhão de bens. Sinteticamente, podemos afirmar que os senhores das terras nunca souberam o que eram direitos dos trabalhadores e o conceito de justiça social era de natureza bem diferente do que é hoje. Não havia políticas sociais. Neste contexto social, a Igreja é quem promovia, à sua maneira, as gentes e as sociedades; e as Santas Casas da Misericórdia estavam organizadas segundo as linhas evangélicas. Em algumas regiões havia tradições comunitárias, de cariz antropológico, mas isso não era «comunhão» nem «partilha».

Tal como no campo sócio-caritativo, também no campo litúrgico se passou o mesmo. A Igreja, enquanto estrutura social e instituição organizada, mantinha em actividade suculenta a sua hierarquia e fazia muito bem a distinção entre clérigos e leigos. Porque havia muitos clérigos, só a estes é que eram acometidos os serviços pastorais, caritativos, litúrgicos e evangelizadores. Aos leigos bastava que, dentro do templo, fossem ouvintes [fossem ouvir e assistir à missa] e, na melhor hipótese, fossem praticantes de sacramentos – o que os levou a serem pouco mais que praticantes de banco (se os havia!) – e, fora do templo, fossem educadores segundo os ensinamentos dos clérigos. O «rebanho», sob a tutela vigilante dos «pastores», tinha de estar naturalmente no redil e, quando estava fora, era conduzido pelos mesmos pastores. Essa maneira de ser e de agir criou a mentalidade – hoje ainda presente em muitos sectores pastorais – de que o senhor Prior é quem tem de fazer, é quem sabe, é quem manda. A velha Europa cristã, apesar de quantitativamente maioritária, nunca foi qualitativamente comunitária, e raramente teve vivência de comunhão. Nem admira, porque a comunhão vive-se melhor em grupos pequenos e nunca pode ser apanágio das maiorias.

Hoje, sendo quantitativamente reduzida, torna-se aparentemente mais fácil à Igreja viver a comunhão. Assim parece, mas assim não é, pois as dificuldades internas são enormes. As tradições de família e os milhares de preconceitos têm muito peso e estorvam a que se faça comunidade fora dos tradicionais grupos de amigos e conhecidos. Também a falta de comprometimento nas coisas que não enchem a barriga e só dão complicações é muito forte. A demografia explica o fenómeno; e a preguiça, o egoísmo e os pergaminhos de família fazem o resto. Por todas estas razões, continua a ser difícil agarrar a ideia de comunhão, porque esta pressupõe duas coisas. Por um lado, a vontade de pertencer, de facto e de prática, a uma instituição que mexe e remexe e contradiz as nossas tendências caprichosas. Por outro, a exigência de fazer a experiência social do testemunho em que o parecer e o ser terão de se identificar. Se, durante muitos séculos, a Igreja católica foi maioritária e, por isso, pouco comunitária, o mesmo não aconteceu nos seus primórdios. Nos primeiros séculos, o que levava as pessoas a entrar nela era o tratamento fraterno dos cristãos, o seu espírito de família, a partilha de bens. Em qualquer tempo da sua história foi este espírito de família ‘exigido’ aos cristãos que atraiu muita gente e fez engrossar o seu número. A propósito: porque é que a Igreja continua a ser a instituição mais credível no que à solidariedade diz respeito?
P. Madureira da Silva

1 comentário:

  1. O comprometimento dos leigos é algo muito bom se a hierarquia da Igreja soubesse apoiá-los. Infelizmente noto que a hierarquia se fecha demasiado em si própria e põe os leigos de fora.
    Falo por experiência própria. Sei o que é oferecer o meu trabalho para a Igreja para no fim ser posto de lado sem qualquer palavra. E não falo de padres, falo um pouco acima deles.

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