quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Havíamos de morrer de outra maneira!

São tantas e tão disparatadas as conversas sobre tudo o que acontece no mundo que já ninguém se espantaria se, de repente, alguém proclamasse – mesmo em brincadeira – que havíamos de morrer de outra maneira: transformar-nos em nuvem, por exemplo, ou em fumo. E que havia de ser quando quiséssemos. Preparávamos as coisas, fazíamos descansadamente o testamento para que a partilha dos bens não causasse complicações nem inimizades entre os herdeiros, chamávamos os amigos para a despedida... e pronto. Assim, as coisas não custariam tanto. Nem havia saudades nem nada. Dávamos uns apertos de mão, uns abraços de despedida e... adeus até um dia, que lá nos havemos de encontrar. O pavor da morte e as circunstâncias tristes que a acompanham esfumar-se-iam e tudo seria mais «normal». Sonhar, bem que sonhamos! Partilhamos o desejo de ser senhores do tempo, senhores do espaço, senhores da vida e senhores da morte. Havia de ser giro! Mas as coisas não são assim. Não tenhamos ilusões. A morte é o que é, e tem as suas regras que não podemos alterar.

A experiência da morte nunca a temos em nós, nunca a temos por conta própria: só a temos como facto acontecido aos outros. Temos a experiência próxima da morte quando nos morre alguém chegado – que de outra maneira é difícil senti-la – e ela é mais facilmente captada pelo coração que pela razão; e temo-la muito longínqua quando os que morrem são, para nós, uns ilustres desconhecidos. Quanto à morte, temos muitos preconceitos e uma pesada presunção. E, no entanto, sobre o que ela é, muito pouco se sabe! A morte não é uma coisa evidente. Nós é que presumimos que sim, que sabemos, que é evidente. A partir dessa presunção, tão depressa afirmamos que tudo acaba no momento da morte, que a sepultura tudo leva e lá se fica na terra da verdade... como acreditamos que tudo continua depois da morte, quer seja na lembrança dos que cá ficam, quer indo para o céu ou para o inferno ou lá o que isso é, quer andando por aí em forma de almas penadas à procura de descanso. Alto lá, que nós preferimos a vida! Donde a nossa decisão em sorver demorada e gulosamente as virtualidades que se nos oferecem enquanto estamos vivos, que, depois, teremos muito tempo para estar mortos.

Quando somos novos, não nos importamos de morrer. Pudera! A morte está tão longe! Mas quando a idade pesa e a doença aperta, as coisas mudam de figura. Quando somos novos, a morte é como todas essas coisas que se sabem por tê-las ouvido contar a outros, mas que em nada influem no nosso comportamento. Por estar longe, preferimos viver como se ela não fosse assunto a ter em conta; e, por não a termos em conta, assentamos arraiais na dissipação exterior, nas passeatas, nas discussões futebolísticas, nas telenovelas, na investigação, na jardinagem e bricolage, no frenesim da vida, na exterioridade de viver... que estas, sim, são assunto de primeira apanha! Definitivamente, e para cúmulo, a morte faz parte dos grandes tabus do nosso século – tabus que abrandam com a idade, claro! Sim, porque a idade traz mais certezas e maior autenticidade e a vida passa a ter outro peso. Os gostos passam a ser outros e os desejos também. A terceira idade não perdoa e a sabedoria acumulada abre horizontes bem vincados. Por exemplo: para além dos aspectos económicos, o principal desejo é que se viva sem zangas nem canseiras nem problemas. Que toda a gente se respeite e se trate como amigos. Que as relações humanas assentem na lealdade e na verdade, para que todos possam confiar em todos. Que a solidão não exista nunca, para que os mais idosos tenham com quem partilhar as muitas experiências acumuladas e a compaixão não seja um sentimento de palavras mas de coração. E que nunca ninguém provoque sofrimentos a ninguém, para que ninguém tenha de responder com azedume, violência e impaciência.

P. Madureira da Silva

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