terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Inácio de Antioquia e a unidade e catolicidade da Igreja.

Análise teológica

CRISTOLOGIA

A cristologia inaciana é muito clara no que toca à confissão da humanidade e divindade de Cristo.

Na verdade, o mistério de Jesus desenvolve-se em duas esferas: a de Deus e a da criação. A sua “epopeia” humana inscreve-se na ordem histórica e temporal, em primeiro lugar e de forma remota, a partir da genealogia davídica, e, de forma mais próxima e directa, ao nascer de Maria Virgem. Percorre as várias etapas da existência humana, é baptizado, sofre a paixão e morte na cruz (Cf. Eph XVI,2; XVIII,1), mas participa também, pela ressurreição, da glória do Pai (Cf. Eph II,2; VII,2).

Os títulos cristológicos que utiliza ao longo da Carta aos Efésios são disso um claro testemunho: Médico (VII,2), Homem Novo (XX,1), Senhor (VII,2), Revelador do Pai (XVII,2), Salvador (I,1).

O famoso hino cristológico de Eph VII,2 contém, de forma lírica e poética, uma síntese profunda da sua cristologia. Aí o mártir de Antioquia afirma que existe um único médico (Cristo) que é carnal e ao mesmo tempo espiritual; gerado e ao mesmo tempo não gerado, isto é, eterno; Deus feito homem; nascido de Deus e de Maria; primeiro passível e depois impassível.

De facto, o primeiro termo (carnal) é de origem bíblica, certamente inspirado no prólogo de S. João (1,14): “E o Verbo fez-se carne”. Carnal e não corporal, porque corpo conota, num certo sentido, em S. Paulo (Rm 8,3; Gl 5,17), com a fraqueza e miséria desta carne de pecado. Ora, Inácio pretende deixar bem claro contra os docetas que Jesus Cristo é efectivamente da raça e descendência de David (Eph XXVI,2) e, portanto, um homem como nós (Smyrn IV,6). Sendo Filho de Deus e também Filho de Maria não se confunde com uma figura aparente e, portanto, inventada, mas trata-se, pelo contrário, de “Alguém” que, sendo Deus, se tornou “alguém”, sendo homem.

A contracenar com “carnal” vem a designação de “espiritual”. Esta palavra, na grecidade cristã, significa mais que uma simples oposição à carne. Refere particularmente uma realidade que se encontra para além do tempo, do visível ou, por outras palavras, significa a transcendência ou natureza de Deus. Inácio frisa bem, noutras passagens, que Jesus Cristo, segundo o espírito, encontra-se verdadeiramente unido ao Pai (Cf. Smyrn III,3; Magn I,2).

Impõe-se, contudo, uma observação muito peculiar a respeito do segundo verso do hino cristológico supracitado: gerado e eterno (à letra, gerado e não gerado). Ora, um leitor menos atento ou, pelo contrário, demasiado pertinente, poderá acusar Inácio de heresia. Na verdade, irá ser o termo “aggenetos” a incendiar o universo cristão nos princípios do sec. IV, sobretudo a partir da doutrina ariana, como veremos a seu tempo. Porém, o mártir viveu duzentos anos antes do aprofundamento doutrinal e teológico do sec IV, que iria desembocar depois no símbolo de Niceia (325). Podemos, pois, dizer que a sua afirmação apresenta-se como um paradoxo, mas que pode ser perfeitamente desvendado: gerado e não gerado. A contradição é meramente aparente. E porquê? Precisamente porque o termo possui aqui o sentido filosófico que tinha na altura e, neste sentido, o bispo de Antioquia pretendia apenas exprimir que Jesus Cristo é gerado no tempo e, ao mesmo tempo, eterno.

Todavia, a página mais bela de Inácio encontra-se na exortação pastoral que dirige a Policarpo e com quem havia conversado durante uns dias de repouso em Esmirna, a caminho do martírio. Nesta exortação, deparamo-nos, mais uma vez, com a profundidade doutrinal, o ritmo literário e a emoção relgiosa que paira no coração do mártir: “aprende a conhecer os tempos. Aguarda o que está acima do tempo, o atemporal, o invisível, que por nossa causa se fez visível, o impalpável, o impassível que por nós se fez passível, o que de todos os modos sofreu por nós” (Pol III,2).

Efectivamente, temos que salientar, a partir daqui, a insistência teológica e a precisão literária com que descreve a paixão do Senhor. Falando aos gregos da divindade de Cristo, o bispo de Antioquia adapta-se à sua mentalidade e categorias filosóficas, apontando-lhes os atributos de Deus. O intemporal, invisível, impalpável e impassível tornou-se visível e sofredor de todas as arbitrariedades do homem. Aqui temos, pois, a mensagem de fé e de esperança de todos os tempos ao coração angustiado de todos os homens: o mistério de amor e sofrimento do Eterno por nós. Por isso, a cristologia inaciana mantém a sua actualidade, como que desejando o bispo de Antioquia segredar-nos ao ouvido: “Perscruta esse fogo que te envolve e constrange no tempo e aguarda Aquele que se encontra para além do tempo”.

Drª. Teresa Pereira

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