quinta-feira, 25 de março de 2010

Pobreza sem pobres?

«É estranho! Há muita pobreza; mas, por incrível que pareça, para encontrarmos os pobres, vemo-nos aflitos» – assim me dizia, há dias, um destacado membro da Conferência de S. Vicente de Paulo, preocupado em não alimentar a pobreza mas em erradicá-la, minorando-a no rosto dos mais carenciados. E acrescentava: «bem sei que no reino da pobreza há diversas modalidades: necessitados, pedintes, preguiçosos, atrevidos, drogados, mentirosos e outros. Mas pobres, não. Julgo até que os pobres a sério se preocupam em negar a sua miséria e a sua desgraça e usam máscaras de suficiência, de independência e de satisfação. No extremo, há os que hipotecam a alma e o futuro, tão endividados ficam aos bancos e aos amigos, só para poderem bajular-se diante daqueles com quem partilham férias. Com raras excepções, ninguém quer ter cara de pobre, ninguém aceita ser pobre, ninguém ambiciona ser pobre. É como aquela situação trivial de todos nos queixarmos de haver muitas mentiras, muitos abusos de poder, muitas injustiças... mas nunca se encontram os mentirosos, os abusadores e os injustos». A pobreza envergonhada é uma realidade tão feia como a pobreza escancarada. Ou não será assim?

Fiquei a pensar no assunto. E dei comigo a folhear o dicionário que continua a definir o pobre como aquele a quem falta o necessário para o exercício digno da sua condição de pessoa – o que me leva a dizer que a pobreza é, lá bem no fundo, muito mais do que um estatuto socio-económico imposto de fora, objectivamente desumano. O significado da pobreza, para além da base económica deficitária, estende-se a outros âmbitos da vida humana, pelo que também se deve falar de pobreza assistencial, cultural, jurídica, religiosa. E convém não fazer abstracções, porque a pobreza são os pobres e os pobres existem. Uns em extrema pobreza, outros menos. Os países onde os direitos humanos são respeitados, criaram, na ordem económico-social, um conjunto de políticas para diminuir a pobreza. Se, desde a Idade Média, as Santas Casas da Misericórdia sempre lutaram por esse objectivo, foi o século XX que alcançou o ponto máximo dessa acção benfazeja através das medidas políticas redistributivas, dos centros de emprego e de saúde, da segurança social, do rendimento mínimo garantido e de outras formas felizmente bem conseguidas. As ideologias de todos os partidos políticos e as políticas de alguns governos fizeram desta matéria um ponto de honra inscrito nos seus programas. Ainda bem! Graças às acções humanitárias, a vida dos pobres é hoje muito menos dura do que era antes. Na ajuda, alívio e promoção dos pobres, é deveras notável o que já foi conseguido.

Mas – julgamos nós – hoje os pobres já não são tantos como eram, nem são tão pobres como antes. Puro engano! Apareceram os novos pobres gerados pela sociedade fria e injusta, pela demografia e imigração, pelo trabalho incerto e pelo oportunismo da mão-de-obra barata. Imitando João César das Neves, vou ironizar um pouco. Os políticos de cena continuam atentos a este fenómeno. Criaram, para estes pobres, muitos sistemas e deram ajudas. Ainda bem! Tais políticos disseram aos pobres que os pobres têm direitos. E isso é verdade. Disseram-lhes que sofriam de injustiça, o que é completamente verdade. Convenceram-nos de que deviam vir a ser ricos. E incentivaram-nos a amaldiçoar os ricos, mas esqueceram-se de os avisar de que, quando viessem a ser ricos, outros pobres os amaldiçoariam a eles, por se terem tornado ricos. E tais pobres, que se tornaram menos pobres e talvez quase ricos, começaram a sentir a sofreguidão do consumo, o êxtase do sexo, o fascínio da profissão, a desilusão da velhice. Depois vieram a violência, a droga, a solidão, o divórcio. E continuou a injustiça. E muitos pobres, que deixaram de ser pobres economicamente, continuam a ser pobres nos outros âmbitos da natureza humana, ética, religiosa e social. Estes são os pobres com estatuto de ricos, e que estorvam o esforço dos verdadeiros pobres na sua acção de luta contra a indigência.
P. Madureira da Silva

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