quinta-feira, 13 de maio de 2010

As coisas de que me queixo...

Comparando os valores que orientaram a minha geração, já lá vão algumas décadas, com os que orientam a geração actual, dou comigo a pensar que, agora, se vive um período de ruptura civilizacional, cultural e ética. Peço desculpa do atrevimento em dizer o que penso, pois sei que é próprio dos mais idosos emitirem juízos de valor começados com as palavras “no meu tempo é que” para dizerem do seu desconsolo actual, presumindo que «antigamente» era tudo muito melhor! Mesmo assim, não resisto a dizer que há, cada vez mais, um enorme abismo entre as gerações, bem notório nas mentalidades e nos respectivos valores. Muitos atribuem a criação deste abismo ao liberalismo capitalista; outros, à civilização do consumo; outros, enfim, a esta ou àquela corrente, vinda não se sabe donde. Este abismo constato-o, por exemplo, nas manipulações genéticas, no tráfico de droga, em todas as espécies e formas de contrabando, no mercado paralelo quase a descoberto, na fuga permanente aos impostos, na falta de autoridade do Estado para elaborar e fazer cumprir as normas de comportamento social, no aumento assustador dos gastos públicos, no excessivo recurso ao prestígio e às representações para se gastar ainda mais, na fuga de capitais – enquanto muitos trabalhadores continuam com salários em atraso. Mais grave que estas transgressões do quotidiano, parece ser a falta de critérios éticos válidos para os denunciar ou, o que ainda é mais injusto, a utilização de diferentes pesos e medidas conforme as pessoas em jogo.

Se falo em vazio ético é porque me dou conta de que há Estados que permitem que o vigarista viva ao mesmo nível que o comerciante honesto, que aquele que paga o salário a quem trabalha viva ao mesmo nível daquele que, podendo, não o faz. Os países, de civilização ocidentalizada, estão a permitir a existência de situações exageradas de «tolerância», porquanto os seus dirigentes criam confusões na cabeça dos cidadãos, levando-os a concluir que o mal é bem, os defeitos são feitios, o anormal é normal, os vícios são virtudes e o crime compensa. O complexo histórico-cultural em que se inserem os valores humanitaristas e libertários, propalados pela cultura contemporânea, funcionam como justificação ideológica de uma alienação consentida, constituindo mecanismos de defesa em relação à busca do sentido de existência. Em grande escala, verifica-se a tentação, por parte de muitos cidadãos, de interpretar ingenuamente esses valores libertários e humanitaristas pelo seu valor facial, como se fossem autênticos valores humanistas – [Uma coisa é «humanista» e outra é «humanitarista»]! Existe um complexo ateu de atitudes e de mecanismos culturais que dão consistência às actuais ideologias e se mostram com uma cara tão filantrópica que a questão de Deus é simplesmente diluída. Esta situação empobrece culturalmente a nossa tradição portuguesa, de origem cristã e de feição católica.

Se falo em vazio ético é porque me dou conta de que muitos fazem o vil mercado de impor a seita [não importa se religiosa, agnóstica, ateia, mercantil, fundamentalista, ideológica ou outra] a que pertencem, roubando o espaço de autonomia, de crescimento e de liberdade às pessoas mais simples. Financeiramente, destaco o fervor sectário dos Bancos a impingir créditos e, pouco tempo depois, a solver em benefício próprio os bens hipotecados, deixando na miséria milhares de famílias cujos rendimentos não dão para pagar os juros dos tais créditos! Comparando a infinita miséria do mundo operário do século dezanove com a grande parte do terceiro mundo actual, verifico que o poder e o domínio de uns é sempre firmado à custa da impotência dos outros. As pessoas mais simples vêem-se impotentes, sozinhas, imersas numa profunda solidão que se acentua à medida que vão avançando as estruturas despersonalizantes dos que se impõem despudoradamente. Atendendo aos seus procedimentos, o vazio ético está nos opressores, nos manipuladores.
P. Madureira da Silva

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