quinta-feira, 1 de julho de 2010

Penitência e conversão

Que Deus é misericordioso e indulgente, nenhum crente duvida. Que, vinda de Deus, a indulgência é uma ajuda extraordinária e nos favorece imenso, é certo. Que o pecador obtém essa indulgência quando entra no caminho da conversão, é ponto assente. Que a conversão é custosa e exige ao pecador que refaça a relação com Deus e com a comunidade humana, é ponto de honra. Que acolher a indulgência não nos dispensa nem da conversão interior nem da sua tradução em acções exteriores, a fim de devolvermos ao próximo o bem de que foi espoliado por culpa nossa, é ponto de esforço. Todo este procedimento tem um nome: penitência. Etimologicamente, esta palavra tem uma dupla origem: poenitentia e paenitentia. A derivada de poenitentia designa um castigo, ou uma coima que redime esse castigo. A derivada de paenitentia designa conversão, mudança de atitude. Na primeira acepção, a penitência será o acto de justiça pelo qual a culpa é sancionada. A lei de Talião era clara: por tal crime, tal castigo de proporções equivalentes ou de equidade ajustada. «Olho por olho, dente por dente». É este o sentido mais vezes repetido nos sermões e nas catequeses, de tal modo que, quando se fala em penitência, logo pensamos em mortificações, renúncias, sacrifícios e tudo o que faça doer... para «pagar» o mal que se fez! Por tal pecado, tal «castigo». É neste sentido que às cadeias chamamos penitenciárias.

Na segunda acepção, a palavra penitência projecta-nos num cenário totalmente distinto do anterior. É o cenário de quem se sente intimamente arrependido ao dar-se conta do mal que causou a alguém por acções, atitudes, incúrias ou comportamentos negativos e agressivos. Neste cenário, sentir pena é sentir pesar do mal causado, é ter vontade e necessidade de mudança de actos e de atitudes, de pensamentos e sentimentos, num compromisso de conversão, num propósito de ser diferente e, se possível, de não voltar a causar mágoa nem dor. Feita esta distinção, tomemos atenção à consequência: fazer penitência pode, então, significar duas coisas bem distintas. Pode significar sacrifícios, castigos, renúncias e mortificações; e pode significar conversão e mudança de vida. No primeiro caso, estamos a referir-nos a acções exteriores que têm efeitos interiores; no segundo caso, estamos a pensar em atitudes interiores que têm efeitos exteriores. As duas são positivamente válidas, necessárias e complementares. E que bom será se, também, forem concomitantes e cumulativas!

A história da Igreja mostra-nos que cada época soube – consoante as circunstâncias e as necessidades – ora proclamar a penitência exterior (poenitentia), ora a interior (paenitentia). A proclamação da penitência exterior arrastou consigo a doutrina das indulgências (no plural) – de que Lutero soube tirar proveito opondo-se à Igreja católica. A proclamação da penitência interior apelava para a indulgência (no singular). O modo exagerado da penitência exterior (à qual faltava a simultaneidade da penitência interior) levou a uma incorrecta visão da Graça de Deus. Quem se não lembra das pagelas de orações onde estava bem referida a quantificação de dias de indulgência que se obtinham pela recitação das orações lá impressas, a querer dizer que o tempo de «passagem» pelo purgatório estava sujeito ao controle humano das indulgências e não à indulgência de Deus? Mas esses foram outros tempos. Hoje é teológica e pastoralmente mais salutar não colocar o peso nas indulgências (no plural) mas em proclamar antes a indulgência de Deus e a penitência (ou conversão) das pessoas, para que estas se comprometam a viver quotidianamente os mandamentos e a sentirem vivo o amor de Deus.
P. Madureira da Silva

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