quarta-feira, 22 de abril de 2009

S. CLEMENTE DE ROMA e a EPISTULA AD CORINTHIOS (c. 96 d.C): apelo à obediência e unidade eclesial (cont.)

Incidiremos hoje no contexto, conteúdo e estrutura desta Carta:

Durante o reinado de Domiciano surgiram várias contendas no seio da comunidade cristã de Corinto. Os diversos conflitos e facções que S. Paulo tinha condenado tão severamente nas suas cartas dirigidas a esta comunidade (Cf. 1 Co 1,12; 2 Co 12,20), tinham voltado a reacender, por volta do ano 95.

Um grupo de jovens cristãos, que Clemente qualifica de “temerários e insolentes” (I,1), entrara em conflito com os presbíteros que, desde há muito tempo, exerciam dignamente o seu ministério na comunidade de Corinto, tendo-os arbitrariamente deposto (I,1; III,3; XLIV,6). Imediatamente se constituíram partidos: por um lado, uma facção apoiante dos mais novos e, por outro, uma maioria que continuava unida aos presbíteros. Ora o eco de tais desavenças tinha chegado às comunidades vizinhas que viam nesses conflitos um grave escândalo, inclusivamente para os próprios pagãos, tratando-se assim de um mau exemplo de vida cristã (Cf. XLVII,7). Provavelmente, foram alguns cristãos residentes em Corinto que informaram a Igreja de Roma acerca da deplorável situação que a mesma vivia.

Clemente associava, assim, esta rebelião provocada por pessoas “insensatas, levianas, orgulhosas e cheias de vanglória” (XXI,5) à que tinha acontecido no tempo do apóstolo Paulo (XLVII,4-6). Pela descrição que faz destes tumultuosos parece, no entanto, reconhecer-lhes algumas qualidades e carismas (Cf. XXI,5; LVII,2; XLVIII,5-6; LIV,1). Todavia, a ambição e as invejas transformavam estes “dons” em motivo de conflito e divisão (Cf. II,2-4; XIV,1-2). Assim se compreende, pois, a insistência que o autor faz na virtude da humildade e na importância da submissão como antídoto contra os males gerados pela soberba e inveja.

A Carta compreende uma introdução ou prólogo, duas partes principais e uma recapitulação ou epílogo, encontrando-se, pois, estruturada da seguinte forma:
· Prólogo (I-III);
· Primeira Parte (IV-XXXVI);
· Segunda Parte (XXXVII-LXI);
· Epílogo (LXII-LXV).

a) Prólogo (I-III): Após a habitual saudação inicial, correspondente ao género epistolar, o autor explica a causa do atraso da Carta, ou seja, as recentes perseguições à Igreja (por Domiciano). Apresenta, em seguida, o motivo da Carta: a sedição que surgiu na comunidade de Corinto (I,1). De facto, antes das divisões reinava a fé, a hospitalidade, a piedade, a ciência, a humildade, a paz e o respeito pelos superiores (I,2-II,8). Depois da rebelião, falta a justiça e a paz, domina o ciúme e a inveja e imperam as contendas e facções que levaram alguns dos membros mais novos a insurgir-se contra os presbíteros (III,1-4).

b) Primeira Parte (IV-XXXVI): Trata-se da secção teológico-parenética onde se refere ao mal da inveja “pela qual o pecado veio ao mundo”, como causa principal das discórdias surgidas na Igreja de Corinto (V-VI). Em contraposição, desenvolve o tema das virtudes que o cristão deve cultivar e apresenta o modo de remediar tal situação: a penitência (VII-VIII), a obediência (IX-X), a hospitalidade e piedade (XI-XII) e a humildade (XIII-XIX). Segue-se, depois, a apresentação dos motivos que devem animar o cristão a praticar as virtudes supracitadas: os muitos proveitos que o Senhor nos concedeu e que podemos contemplar no universo (XX-XXIII), as promessas da ressurreição (XXIV-XXVI), a consciência de que Deus vê e conhece (XXVII-XXX) e as bênçãos temporais e eternas que Deus promete e concederá por Jesus Cristo (XXXI-XXXVI).

Temos a destacar, nesta parte, os seguintes aspectos:

- Os capítulos V e VI são muito importantes para a História da Igreja, na medida em que o primeiro contem um testemunho válido em favor da permanência e do martírio de S. Pedro em Roma bem como do martírio e da viagem de S. Paulo à Península Ibérica (“ ao termo do ocidente”, V,7) e o segundo concede-nos preciosas informações sobre a perseguição aos cristãos levada a cabo pelo imperador Nero, ao falar de uma multidão de mártires, sendo muitos deles mulheres.
- Deus manifesta a sua misericórdia e amor para com o homem na criação (XI,3-20). O tratado sobre a harmonia que reina na ordem do universo (XX) revela a influência da filosofia estóica no pensamento do autor. Como Criador, Deus regozija-se em todas as suas obras, particularmente na sua “imagem”, ou seja, no homem criado “com suas mãos puras e irrepreensíveis” (XXXIII). A bondade do Pai manifesta-se também nas suas promessas em favor da humanidade (XXXIV-XXXV).
- Os capítulos XXIV e XXV tratam, respectivamente, do tema da ressurreição dos mortos e da lenda simbólica da ave Fénix, sendo a alusão mais antiga da literatura cristã a esta lenda que desempenhou um papel importante na literatura e na arte do cristianismo primitivo.

c) Segunda Parte (XXXVII-LXI): Depois dos critérios e valores já enumerados, é examinado o episódio da rebelião de Corinto, tendo em conta estes aspectos: 1- A necessidade da hierarquia eclesiástica, através de exemplos da linguagem do exército, do corpo humano e da ordem jurídica (XXXVII-XLI); 2- A necessidade de submissão aos superiores na medida em que estes representam o Senhor. De facto, Jesus Cristo foi enviado por Deus, os apóstolos foram enviados por Cristo e os episkopoi, presbiteroi e diakonoi foram constituídos pelos apóstolos que, deste modo, “fixaram a regra da sucessão”. Por este motivo, não é justo contestar ou depor aqueles que sucederam aos apóstolos, tratando-se ainda por cima de pessoas dignas e aprovadas por toda a Igreja (XLII-XLIV); 3- É denunciada a gravidade da culpa daqueles que se rebelaram contra os presbíteros da antiquíssima comunidade cristã de Corinto. O eco de um tal pecado provocara escândalo não só no seio da Igreja, mas também fora do grupo dos crentes (XLV-XLVII); 4- Apela-se à penitência como único remédio para sanar o mal cometido e como meio de obter o perdão do Senhor. Apela à necessidade de submissão aos presbíteros e sugere que os culposos, se necessário, se ausentem mesmo de Corinto, a fim de que a paz se restabeleça de forma mais rápida e eficaz. Para que tais instruções possam ser acatadas torna-se necessária a oração, da qual o próprio Clemente dá o exemplo, deixando-nos na sua Carta uma belíssima oração (XLVIII-LXI). É precisamente na parte que precede a recapitulação, conclusão ou epílogo (XLIX,4-LXI,3) que “resplandece” uma belíssima oração, na qual dá testemunho da divindade de Cristo, a quem designa, entre outros títulos, de “amado Filho” (LIX,3) “Sumo Sacerdote e Defensor das nossas almas (LXI,3). Clemente canta aqui também os louvores da providência e misericórdia divinas. A oração conclui com uma prece em favor do poder temporal, possuindo assim um grande interesse para o estudo do conceito cristão primitivo de Estado.

d) Epílogo (LXII-LXV): Depois de fazer um resumo do conteúdo da Car-ta (LXII-LXIII,2), o papa Clemente anuncia ter enviado como legados “homens fiéis e sábios que, da juventude à sua velhice, viveram entre nós de modo irrepreensível e que serão testemunhas entre vós e nós” (LXIII,3). São referidos os nomes dos legados desta missiva e missão pacificadora e ressaltada a es-perança de que eles regressem brevemente com a alegre notícia de que a paz e concórdia voltarão a reinar na comunidade de Corinto.

Drª. Teresa Pereira

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