segunda-feira, 13 de julho de 2009

A Palavra e a Acção na celebração Litúrgica – dimensão sacramental

PARTE II – ALGUNS TRAÇOS DA EXPERIÊNCIA BÍBLICA

Melhor caminho não existirá, para abordar o nosso tema, do que nos interrogarmos sobre a perspectiva da experiência bíblica. Aí encontraremos as linhas de força para a nossa reflexão, os critérios para a necessária purificação do nosso agir e as luzes para o nosso caminhar.

O RELATO DA CRIAÇÃO
Atentemos, antes de mais, ao relato da Criação. Tudo depende do falar de Deus: “Deus disse: Faça-se…” e foi feita a luz, a água, os continentes, as plantas, os animais, as astros, os dias. É o falar de Deus que gera todas as coisas e define o desígnio e a missão de cada uma delas. A criação não é um acto biológico obrigatório, antes, parte da vontade amorosa de Deus O leva a dizer: “Faça-se…”.

Ocupa lugar de relevo a criação do homem. Também ele dependente do dizer de Deus como todas as criaturas, mas com algo de específico que o distingue, em absoluto, de todas elas: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança!” A semelhança com Deus vem-lhe da capacidade de amar. Porque somos amados por Deus, podemos retribuir no amor a Deus e aos irmãos. Onde nos distinguimos de todos os outros seres é, de facto, na capacidade de relação consciente com Deus Criador e Redentor. O ser humano surge, na obra criadora, como um “Tu” de Deus. É vocacionado para a comunhão plena com o Criador. Habita num jardim ideal e passeia com o Criador pela brisa da tarde. O que somos é reflexo do falar de Deus. Deus, Comunhão de Pessoas, criou-nos para a comunhão. Esta Verdade íntima de Deus é a nossa vocação. Fomos criados por Ele e para Ele. Por isso, no presente, estar em Deus, na fidelidade à sua Palavra é o que nos deve caracterizar. Daí, a nossa inquietação angustiada sempre que não estamos em harmonia com a nossa vocação.

A tentação é ocuparmos o lugar de Deus. “-Sereis como deuses…” O egocentrismo humano deturpou a vontade de Deus no que diz respeito à nossa convivência recíproca. O que se destinava a ser um convívio de comunhão e amor torna-se espaço de reivindicação de protagonismo por parte do homem. É preciso matar Deus para que o homem seja livre! Quer ser como Deus e perverte o sentido da criatura realizada segundo o seu desígnio de amor para exigir ser ele o senhor da sua história.

A tentação de Adão e Eva tem ampla aplicação no modo como nos relacionamos e celebramos a presença de Deus. È fácil celebrarmo-nos, sem deixar que seja Ele a falar e a insuflar-nos do seu Espírito, isto é, celebrá-Lo a Ele porque está no meio de nós. O ritualismo, por si só, é uma tentação perversa, pois, a alma da Liturgia sai diminuída correndo-se o risco de secundar o falar de Deus.

A DENÚNCIA DE ISAÍAS FACE AO RITUALISMO
Esta perversão egocêntrica vai manifestar-se de inúmeros modos ao longo da história da salvação. Mesmo permanecendo religioso, o homem vai ceder facilmente perante a tentação de querer “ser como Deus”. Onde, porém, esta perversão se vai sentir mais vincadamente, é nas acções rituais e litúrgicas. O falar de Deus que faz acontecer e criar as coisas é substituído pela acção religiosa e ritual que, não raras vezes, sufoca esse falar e o acto sempre novo da criação. Na acção litúrgica, o que fazemos deve estar em profunda relação com os mistérios revelados, isto é, ditos por Deus na história. Como que não deveríamos “inventar” nada. Os nossos gestos deveriam, antes, exprimir a Verdade que foi revelada e nos foi anunciada. O que acontece em cada celebração litúrgica é que Deus renova o seu falar e espera de nós respostas que signifiquem docilidade à sua Palavra.

Todavia, o encontro redentor e libertador entre Deus e homem que deve acontecer em cada celebração litúrgica é, facilmente, substituído pela experiência tipicamente religiosa onde os nossos gestos e simbolismos, não de raro, não deixam espaço para o falar actuante de Deus. E erguemos, porventura, magníficos cenários de elevada estética ritual que, inclusive, poderão impressionar o olhar dos homens, poderão exprimir formas de poder religioso mas… Não necessariamente tocam o coração de Deus. Parece exagerado este meu dizer? Escutemos o que nos refere o primeiro capítulo de Isaías a partir do versículo décimo:

“Ouvi a palavra do Senhor,
Ó príncipes de Sodoma;
Escutai a lição do nosso Deus,
Povo de Gomorra:
«De que me serve a mim
A multidão das vossas vítimas?
- Diz o Senhor.
Estou farto de holocaustos de carneiros,
De gordura de bezerros.
Não me agrada o sangue de vitelos
De cordeiros nem de bodes.
Quando me viestes prestar culto,
Quem reclamou de vós semelhantes dons
Ao pisardes o santuário?
Não me ofereçais mais dons inúteis:
O incenso é-me abominável;
As celebrações lunares, os sábados,
As reuniões de culto,
As festas e as vossas solenidades
Não as suporto mais.
Quando levantais as vossas mãos
Afasto de vós os meus olhos;
Podeis multiplicar as vossas preces
Que eu não as atendo.
É que as vossas mãos
estão cheias de sangue.
Lavai-vos, purificai-vos,
Tirai da frente dos meus olhos
A malícia das vossas acções.
Cessai de fazer o mal,
Aprendei a fazer o bem;
Procurai o que é justo,
Socorrei os oprimidos,
Fazei justiça aos órfãos,
Defendei as viúvas.
Vinde depois, entendamo-nos,
-diz o Senhor.
Mesmo que os vossos pecados
Sejam como escarlate,
Tornar-se-ão brancos como a neve.
Mesmo que sejam vermelhos
como a púrpura,
Ficarão brancos como a lã."

O profeta tem diante dos olhos a experiência de Israel que com demasiada facilidade esquecia as maravilhas de Deus para se cristalizar no acto ritual estéril e vazio. A estética ritual substituía a interioridade do gesto, a sua verdade íntima, obscurecendo a alma da celebração que é a presença espiritual de Deus no meio do seu povo.

Quantas vezes as nossas palavras podem também tomar dianteira face ao falar de Deus. Os nossos símbolos ofuscam os grandes sinais das maravilhas realizadas por Deus no passado e que as quer actualizar hoje, na nossa vida. O resultado é o silêncio de Deus e uma celebração fruto das nossas mãos onde a sua presença é substituída por um nítido sentimentalismo religioso.

OS ANÚNCIOS DE JESUS A ESTE PROPÓSITO
O tema central da pregação de Jesus é o anúncio do Reino de Deus. Ao longo da sua vida pública, foi anunciando aos discípulos as verdades que devem caracterizar os seus discípulos. Há uma “lógica de Reino” que Jesus vai revelando progressivamente. Ele vem, por um lado, na continuidade dos grandes gestos de Deus ao longo da história da salvação mas, por outro, Ele anuncia coisas novas, abre novos caminhos, propõe um mandamento novo. Quem O segue, há-de viver na comunhão com Deus e na comunhão com os irmãos, pois, uma reclama a outra.

Na Comunhão com Deus
A oração dos discípulos não pode ser mera devoção própria de quem reza muitas orações. Não se trata de pedir muito mas sim de entrar na intimidade com o Pai onde os seus dons se comunicam. “Nas vossas orações, não sejais como os gentios que usam de vãs petições porque pensam que, por muito falarem, serão atendidos. Não façais como eles porque o vosso Pai celeste sabe do que necessitais antes de vós lho pedirdes.” (Mt. 6,6).

O Pai sabe. O que de nós espera é a adesão sincera e verdadeira do coração e da mente para que nos cumule com suas graças e bênçãos. Assim, o gesto de rezar parece nosso mas, de facto, o Pai já sabe e, por isso, é também atitude sua, olhar seu sobre os seus filhos que imploram misericórdia. Na oração, não só rezamos a Deus mas em Deus. “Quando rezardes, não digais: - Tenho Deus no coração. Dizei, antes, estou no coração de Deus!” Khalil Gibran in Profeta . O verdadeiro discípulo não é o que bate muito com a mão no peito mas o que cumpre a vontade do Pai.

O verdadeiro discípulo sabe que o Pai sabe e, por isso, abandona-se, entrega-se e une-se a Deus que se faz presente quando reza: “Nem todo o que diz: «Senhor, Senhor!» entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai”. Podemos até profetizar em seu nome, expulsar demónios, fazer milagres mas isso é insuficiente. O Pai poder-nos-á dizer, mesmo com todos esses gestos fantásticos, que “nunca vos conheci; afastai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade.” (Mt. 7, 21.23)

A nossa oferenda e os nossos gestos sacramentais não podem perder de vista que Deus é o Senhor, o Senhor do Sábado e do Domingo, o Senhor dos dias, o Senhor de todas as coisas que, porventura tivermos para Lhe oferecer. Já são suas mesmo antes do oferecimento. Não é a oblação, a oferta, o sacrifício que “impressiona” ou move Deus. É, sim a misericórdia e o amor que colocamos nas nossas acções e oblações que suscitam o seu olhar de Pai e os dons do seu coração. “Ide aprender o que significa: Eu quero a misericórdia e não o sacrifício!”

A mentalidade reinante, escandaliza-se com o novo anúncio de Jesus. Os fariseus e doutores da Lei acham que os discípulos de Jesus transgridem os mandamentos de Deus porque não seguem “à risca” o que está preceituado nos rituais judaicos. Jesus denuncia severamente a sua hipocrisia: “E vós, porque transgredis o mandamento de Deus por causa da vossa tradição? (…) Em nome da tradição anulaste a palavra de Deus. Hipócritas! Muito bem profetizou Isaías a vosso respeito.” (Mt. 15, 3.6-7).

Os ritos e as tradições que não sejam expressão da Palavra de Deus e não sejam expressão do falar de Deus… são uma hipocrisia, segundo o anúncio de Jesus. A nossa celebração há-de, pois, exprimir a comunhão com Deus quer pessoal quer comunitária.

Quando chega a Jerusalém, ao ver o que se passava no Templo, Jesus expulsa os vendilhões porque aquele lugar deveria ser casa de oração, lugar de encontro com Deus e não lugar de comércio. De seguida, curou muitos doentes causando grande indignação aos fariseus e doutores da Lei.

No banquete que o Senhor nos prepara e para o qual somos convidados, temos que ter a veste com que Ele nos reconhece. Podemos estar no banquete mas sem a veste apropriada. Sem a veste própria, não seremos convivas.

O Templo com os seus ritos até serão destruídos mas a vida nova do Ressuscitado permanecerá eternamente.

Na Comunhão com o Irmão
Jesus refere-se à Lei de Moisés não para a revogar mas para a aperfeiçoar. A perfeição da Lei consiste em dar mais importância ao amor ao próximo. E neste aspecto, Jesus reclama mesmo uma autoridade que confunde os seus ouvintes: “Ouvistes o que foi dito aos antigos… eu, porém, digo-vos”. Jesus anuncia um modo novo, um caminho novo, um mandamento novo. O irmão para amar é a chave da nova luz que Jesus anuncia.

Esta nova visão das coisas leva a que na celebração ritual da oblação, para que seja verdadeira a oferta, ela deve exprimir a nossa convivência fraterna, expressão do Reino de Deus: “Se fores, portanto, apresentar uma oferta sobre o altar e ali te recordares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar, vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois, volta para apresentar a tua oferta.” (Mt.5, 23-24) O gesto exige a nossa convivência fraterna. Se entre nós não há espírito de irmãos, a nossa oferta, obriga-nos a refazer os laços da fraternidade, pois, só então, o Pai nos reconhece como seus.


P. Mário Tavares

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