segunda-feira, 6 de julho de 2009

A Palavra e a Acção na celebração Litúrgica – dimensão sacramental

PARTE I – O sentido do tema

Foi-me pedido que abordasse o tema “A Palavra e a Acção – Dimensão Sacramental”. Trata-se de um tema fecundo, com diversas possibilidades de abordagem. Fá-lo-ei mais do ponto de vista teológico-pastoral do que litúrgico propriamente dito ainda que ambas as perspectivas se reclamem mutuamente e se completem.

Na história da Salvação, sempre a Palavra e a Acção estiveram presentes como aspectos determinantes, concorrendo harmonicamente em ordem à redenção da humanidade. Quase poderíamos dizer que nunca houve Palavra sem gesto, isto é, Palavra vazia, sem consequência, nem gesto que não tivesse por base uma Palavra inspiradora. Deus, nos parâmetros da revelação judaico-cristã, fala e actua, é Deus de Palavra, de muitas palavras, e de sinais através dos quais se vai plasmando um dinamismo de encarnação na história. Por sua vez, o Homem é visto como um verdadeiro interlocutor de Deus capaz de escutar a sua voz e, com Ele, dialogar no remanso de um jardim ideal confortado pela amena brisa da tarde ou nas situações de opressão e cativeiro. Também o Homem, por sua vez, é um ser de palavras e de sinais.

Na economia da salvação, Deus fala e espera respostas; o homem escuta e responde, acolhe e celebra com gestos que exprimem uma vontade de comunhão com Deus que o mesmo é dizer, vontade de Salvação. Deus e Homem, Palavra e gestos, ecos da Verdade eterna que toca o coração e a mente do homem e o levam a gestos e acções rituais que pretendem ir muito mais além do rito, pois, propõem-se tocar o coração de Deus. A Palavra evidencia a saudade das origens – nós vimos de Deus, não nos esquecemos disso – e propõe caminhos de subidas e de regresso onde os homens se descobrem peregrinos, em companhia uns dos outros, na esperança da Pátria.

O falar de Deus é uma constante de que Deus não abdica. A própria Criação é Palavra em acção. Ao criar por amor, Deus não deixa a sua obra desamparada e à deriva. Antes, revela-se como fonte regeneradora da história mesmo promovendo o concurso do homem como protagonista e co-herdeiro e…fala. Não num sussurro confuso mas num apelo transparente, ao ponto que quem ouve, ouve claramente e tem consciência do que lhe é proposto. Abraão sabe o que Deus lhe diz. Moisés entende perfeitamente o que Deus lhe pede. Os profetas vêem com clareza a missão que Deus lhes confia. Maria abraça conscientemente o que o anjo lhe disse da parte do Senhor. O falar de Deus e a resposta do Homem marcam o ritmo de toda a história da Salvação.

O falar de Deus é um falar comprometido e gerador de Aliança. As suas palavras evidenciam a sua vontade. E a sua vontade é que a humanidade se salve. Por isso, quando o Verbo incarnou, isto é, quando a Palavra foi dita em plenitude, a luz veio até nós para que o caminho se ilumine e a esperança se reacenda. Ao celebrar a sua vinda, estamos a percorrer o caminho da nossa ida. Descobrimos que Deus caminha connosco, como sempre fez.

Todavia, este processo pode ser viciado e ficar assim, comprometida, a obra da Salvação. Deus fala mas nós podemos não escutar a Sua voz ou porque já não a ouvimos ou porque já não a reconhecemos. Ou simplesmente, porque já não queremos escutar a sua Palavra. Então, os nossos gestos, serão exclusivamente nossos e não expressão do diálogo harmonioso entre Deus e o Homem. Poderão até ser muito religiosos e de elevada perfeição ritual, mas poderão ser tão nossos, que não sejam habitados pelo eterno. Aí o abraço redentor fica comprometido e a esperança da Pátria, adiada.

O que está em questão neste tema, é o darmo-nos conta da necessidade que as nossas celebrações litúrgicas sejam lugares onde Deus fala e nós respondemos em Acção de Graças e de Louvor. Em cada celebração litúrgica, o braço de Deus distende-se para nós, ao encontro da nossa mão suplicante e necessitada de um enlace eterno.

O olhar paterno de Deus, na história da salvação, revelou esta verdade inesperada e surpreendente mas de larguíssimas consequências: Deus é Trindade, Deus é Amor. Contemplar o Amor trinitário e imitar os gestos desse Amor revelado em Cristo é o grande desejo do discípulo que quer caminhar para Deus segundo a proposta do Evangelho.

Todavia, a grandiosidade deste gesto onde Deus mostra o seu rosto fazendo-se história, ir-nos-ia mostrar uma dimensão porventura ainda mais grandiosa que supera qualquer possibilidade de espera: Entrar na Trindade, entrar no seu seio e fazer dela a nossa morada. Não podemos abraçar o oceano mas podemos mergulhar nele; não podemos abarcar a grandiosidade das montanhas mas podemos calcorrear os seus sulcos e subir aos seus picos escarpados; Não dominamos todos os mistérios da vida mas saboreamos o que significa estar vivo, partilhando os seus encantos e emoções. Não podemos abarcar o mistério da Trindade com a nossa mente mas podemos entrar nele, mergulhar nele, pois, o Caminho já nos foi mostrado, a sua Verdade já nos foi revelada, a sua Vida já nos foi comunicada.

O que celebramos é o nosso estar na Trindade. Em última análise, a celebração dos mistérios é estar no seio de Deus que nos acolhe como filhos e connosco faz festa. E estamos como somos, permanecendo Deus como é. Estamos com o nosso ser, com as nossas debilidades e fragilidades mas também com as nossas renovadas possibilidades de exprimir O que acreditamos e em Quem acreditamos. Fazemo-lo através de sinais e gestos mediante os quais queremos celebrar e adorar Deus que nos ama e nos salva.

Aqui encontramos a provocação e a importância nuclear do nosso tema: Em que medida os gestos que celebramos exprimem o nosso estar em Deus, na Verdade, Palavra Primeira e Última e a Quem queremos adorar num hino de louvor que jamais a Igreja cessou de entoar desde a manhã do “primeiro Dia”?

Porventura pode o homem entrar de novo no seio materno e voltar a nascer? – Perguntava-se Nicodemos. Na celebração litúrgica reunimo-nos, para renascer, segundo o Amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Reunimo-nos, no sentido de unirmo-nos de novo ao sentido primeiro do nosso ser. Em cada celebração, repete-se o falar de Deus que nos refaz como nova criatura, segundo o seu amor. Se fisicamente a ideia de renascer confundia Nicodemos, espiritualmente, é a verdade que se manifesta na celebração litúrgica dos mistérios da nossa fé.

P. Mário Tavares

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