quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Sabedoria e ditados populares

A sabedoria dos povos está cristalizada em tradições e costumes. Na sua vertente mais popular, tal sabedoria (ou cultura) fixa-se linguisticamente em sentenças e ditos populares [também chamados provérbios e adágios] facilmente identificáveis por serem sintéticos, claros e concisos. É uma sabedoria – fruto de aturadas observações e de seculares experiências – que se transformou na grande filosofia da vida. Por isso está presente em todos os sectores da vida e é (quase) infalível. É o verdadeiro saber “de experiências feito” adaptado a todos os gostos e parâmetros, desde as mais genuínas questões morais até às quotidianas preocupações pelo tempo atmosférico e pelas colheitas. Não necessitamos sequer de folhear o Borda d’Água, o Seringador, ou qualquer Almanaque, porque todos sabemos de cór uma quantidade dessas sentenças. Mesmo que os intelectuais desconfiem da verdade científica desses provérbios por resultar duma sabedoria pré-crítica, expressa em sagas e mitos e, por isso, sem consistência racional, os outros [que somos todos nós] achamos que é uma sabedoria milenar que, estando presente nos mais ínfimos pormenores do agir e do observar, ultrapassa as fronteiras geográficas e penetra nas do tempo. É uma sabedoria prática, intensa, realista, genuína e acertada, como se se tratasse de axiomas!

Hoje, a mim, não me sai da cabeça aquele ditado popular: “quando um cego guia outro cego, acabam os dois por cair em algum abismo”. E porque este provérbio fala de cegos, também me não sai da cabeça um outro: “retira a trave que tens na tua vista para poderes ver o argueiro que o teu irmão tem na dele”. Estas duas sentenças projectam-me para um mundo em que a cegueira tem de ser analisada no seu sentido figurado e a verdade absoluta deve ter um tratamento especial, pois não tem nada a ver com as opiniões e as verdades relativas. Atingido o sentido figurado e feita a distinção entre o que há de absoluto e de relativo na verdade, conseguir-se-á observar que não sofrem do mal da cegueira os verdadeiros defensores da verdade nem os que presumem conhecer verdades. O mal da cegueira (simbólica) ataca os que presumem saber tudo, julgam conhecer toda a verdade, se auto-consideram intocáveis e se colocam em pedestais de sobranceria e orgulho intelectual. Estes, rusticamente inchados e preconceituosos, dão-se ao luxo de criticar, murmurar, julgar e achincalhar tudo e todos, num tom majestático e irónico. Coitados! Apontando os defeitos dos outros, nem se apercebem dos seus! Vendo os argueiros dos outros, não se dão contam das próprias traves.

Em si mesma, a verdade é absoluta. Mas, em nós, ela é finita, incompleta e múltipla nas suas formas. Em cada um, a verdade torna-se «verdades», (no plural). As verdades são sempre relativas e parcelares, são sempre pontos de vista. Cada um, à sua maneira, possui da verdade somente uma parte. Quantas verdades de ontem são hoje falsidades e mentiras! Quantas verdades de hoje serão amanhã falsidades e mentiras! Mas voltemos às duas sentenças anteriores. Quem presume ter a verdade toda do seu lado é um convencido e rapidamente se torna intolerante e prepotente. Quantos mártires houve por causa dos que identificaram as próprias opiniões com a verdade absoluta! Convencidos de que só os outros é que são cegos, e de que nós possuímos a verdade toda, achamos que temos muita capacidade para os «guiar», que «sabemos» mais e que estamos em melhor posição para o fazer! O ditado popular (que considera cegos os dois) repete que os cegos acabam por cair em algum abismo, tanto o que guia como o que é guiado. Uns caem porque são arrogantes. Outros porque são mal guiados. E já agora: nunca ouviram dizer que o maior cego não é o que não vê, mas aquele que não quer ver? Há que, primeiro, retirar a trave! Há vítimas da mesquinhez, dos azedumes e de uma série infinita de dicas e tricas, aparentemente inocentes, oriundas das bocas preconceituosas de quem tem a mania de que é melhor que os outros. Cruzamo-nos com essas vítimas; e cruzamo-nos com os carrascos. Razão tem o povo: presunção e água benta, cada qual toma a que quer.
P. Madureira da Silva

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