quinta-feira, 6 de maio de 2010

Existe purgatório?

Há um princípio de razoabilidade que diz «não fales daquilo que não sabes». Num clima de honestidade intelectual, este princípio, se fosse respeitado, evitaria milhões de discussões inúteis, milhões de palpites sem fundamento ditos com muita veemência. Por isso deveria aplicar-se a qualquer tipo de conhecimento, não importa se especulativo se prático, científico ou do senso comum. Veja-se, neste contexto, o caso do Purgatório, a respeito do qual seria melhor ficar-se calado. Só que, ficando calado, nem a especulação nos permitiria pensar fosse o que fosse nem, quanto a esse tema, a história teria qualquer sentido. Lutero (séc. XVI) foi o culpado. Lutero declarou que não é possível provar a existência do purgatório a partir da Sagrada Escritura. Não havendo provas bíblicas, concluiu da sua não existência. Esta declaração fez estremecer a «fé» e aguçou a curiosidade de alguns católicos que se puseram afincadamente a folhear a Bíblia à procura de alguns versículos que deixassem Lutero por mentiroso e que demonstrassem aos protestantes que estes não têm razão. Pararam no 2.º Livro dos Macabeus, cap. 12, versículos 38-46.

Esta passagem bíblica relata que no ano 160 a.C., numa batalha contra os Sírios, morreram vários soldados judeus; quando os foram sepultar, encontraram, por debaixo das roupas, amuletos e talismãs. Estupefacto com tal descoberta e confrontado com tal superstição, Judas Macabeu ficou «passado»; mas teve uma ideia: fez uma colecta entre os soldados e mandou-a ao templo de Jerusalém para ser oferecido um sacrifício de expiação pelos pecados daqueles soldados, a fim de que Deus lhes perdoasse o pecado de idolatria e pudessem gozar da ressurreição. Ora bem. Este texto não fala de purgatório. Diz simplesmente que o pecado da idolatria (pois é disso que se trata) era «perdoado», em vida, com um sacrifício de expiação chamado Kippur, realizado no templo (cf. Levítico 4 e 5). Estando já mortos, aqueles soldados não mais podiam oferecer o sacrifício para ficarem purificados ritualmente. Judas pensou na solução: os vivos poderiam oferecê-lo em vez dos mortos e em favor dos mortos; e foi por isso que ordenou essa colecta. Sem se dar conta, anunciou a solidariedade entre vivos e mortos e prognosticou o dogma da comunhão dos santos [que a imagem dos vasos comunicantes tão bem explicita].

Mas sejamos prudentes: o facto de a Bíblia não usar o termo «purgatório», não significa que não tenha sentido nem fundamento. Pelo contrário. A Igreja baseia-se exactamente na Bíblia para ensinar a sua existência. Não a partir de um texto concreto em particular, mas em duas ideias gerais que, clara e repetidamente, nela estão patentes e são o núcleo deste dogma. A primeira é a convicção de que só é possível ter acesso à presença de Deus em absoluta pureza, quer ritual, quer moral. A segunda é que Deus, na “outra” vida, recompensará cada um conforme as suas obras (cf. Rm 2,6). Ora bem: todos havemos de morrer, e nisso nem sequer somos originais! Acontece que muitos, apesar de terem sido fiéis no redil do qual Cristo é a porta, precisarão de uma etapa prévia de purificação após a morte, já que não estão «em condições». Etapa não mensurável à maneira de calendário, mas à maneira de eternidade. Como será, não sabemos. O que sabemos (pela fé) é que quem está no Purgatório são seres espirituais, incapazes de comunicar fisicamente com o nosso mundo material. Tomemos como verdade que há por aí engenhosos disparates, nascidos da devoção piedosa e da imaginação desastrosa, que se manifestam num arrazoado de frases bonitas, misturando a graça com o castigo, o tempo com a eternidade, a acção divina com a humana. [Todos nos lembramos de alguns livros de devoção que traziam listas de pecados veniais com a indicação precisa da duração dos castigos, como se fosse possível contar no além o tempo por anos, meses e semanas. E da mesma maneira as indulgências parciais que eram interpretadas como a garantia de uns tantos dias a menos nesse «mar de chamas»]!
P. Madureira da Silva

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