quinta-feira, 27 de maio de 2010

O mal e o bem à face vêm

Não sei como são os outros povos, mas nós, portugueses, temos uma tendência inata, quase genética, para inventar, descobrir e encontrar não as causas, mas os culpados de tudo o que vai acontecendo na nossa existência. Unanimemente lhes apontamos o dedo, descansando na presunção de que a culpa nunca é nossa; é sempre deles. Não sabemos viver de outra forma. E o patusco de tudo isso está em que todos os outros parâmetros da vida funcionam nesse âmbito. Por exemplo: há um acidente, morrem umas tantas pessoas. Desde que saibamos como foi (e os media lá estão para informar!) e de quem é a culpa, logo desligamos e passamos para outra motivação, esquecendo as mortes, o sofrimento, as vítimas! Se houve um tiroteio entre gangs, se o terramoto matou milhares numa qualquer parte do mundo longínquo, se os incêndios queimaram muitos hectares de floresta... desde que se saiba como tudo aconteceu, tais temas deixam de interessar. Interessa é descobrir os culpados. E, naturalmente, fazemos a confusão contínua entre culpa e causa, entre causa e circunstância, entre circunstância e condicionalismo., entre motivação e culpa. Por fim, para simplificar as coisas, quando não descobrimos os culpados, apontamos armas contra Deus que Ele, sim, tem as costas largas e é o culpado de tudo!

Quando as contrariedades da vida nos assolam, é comum decidirmos ajustar contas com Deus; e podemos chegar a pensar e até afirmar que, ao ocorrer um cataclismo, um acidente, uma desgraça, foi Ele que quis! Já que é Ele o responsável de toda a criação, o grande arquitecto do mundo, exigimos falar com «o proprietário». Sabem o que é que Deus faz? Não escamoteia a questão, mas pergunta-nos que problema é esse – pois quer-nos satisfeitos. Por nos faltar a honradez e a coragem de assumirmos a quota-parte de responsabilidade, tornamo-nos atrevidos: Se sois bom, como dizem, porque é que as coisas nos correm mal? A piada está em que é esse justamente o grande prazer de Deus: estar por perto quando d’Ele necessitamos, nem que seja para O «chamar à pedra». Ele só aparece quando O chamamos, porque não quer forçar a porta. Às vezes faz-Se rogado e precisamos de esperar muitas horas. Por fim, aparece. Não responde logo, nem responde com respostas, mas com perguntas. Toma o lugar da nossa consciência e lembra-nos: Não estarás à procura de justificações rápidas, escondendo o dedo humano que está por detrás das tuas razões?

Cuidado com as falsas ideias que temos de Deus! Conforme a ideia que d’Ele tivermos, assim será o nosso agir com o próximo. Teremos comportamentos, atitudes e acções generosas se tivermos uma boa opinião de Deus. Se considerarmos Deus como um juiz severo, inflexível e frio, usaremos a mesma severidade no relacionamento com os outros. Estaremos sempre dispostos a julgar e condenar. Tornar-nos-emos legalistas. Se vemos Deus como um polícia à procura da mínima infracção e assíduo em «espiar» os actos e as faltas, também usaremos essa óptica com o próximo. E tornar-nos-emos fiscais e opressores. Se fabricamos a imagem de um Deus mesquinho e justiceiro, da mesma maneira nos iremos comportar. Seremos lentos em perdoar e, se porventura acontecer o perdão, é só depois do devido castigo, de uma lição exemplar; e o nosso relacionamento com os outros não alcançará nunca «a altura, o comprimento, a profundidade» e a imprevisibilidade do amor. Tudo ficará muito rasteiro! Se vemos Deus como um distribuidor de prémios e castigos [pois é grande a influência que a doutrina sobre o inferno e sobre o céu tem em nós] – sentir-nos-emos impelidos a dividir os irmãos entre maus e bons, entre os que merecem e os que não merecem o nosso amor. E nunca entenderemos o que significa amar gratuitamente.
P. Madureira da Silva

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