quinta-feira, 17 de junho de 2010

Tolerância

Timeo hominem unius libri – temo as pessoas de ideias feitas, de opinião única, que só vêem um lado da questão e não admitem que possam existir outras perspectivas e opiniões. Tais pessoas são intolerantes quanto às divergências de opinião e intolerantes quanto às pessoas que defendem essas divergências. É uma intolerância dupla: quanto às doutrinas e quanto às pessoas. Todos os extremismos políticos e partidários, todas as ideologias compulsivamente agrestes, todas as tiranias cruelmente policiadas, todos os fundamentalismos religiosos e raciais, todos os fanatismos visceralmente vingativos, todos os terrorismos indiscriminadamente destruidores e todos os dogmatismos imperialmente impostos são intolerantes. Mas uma coisa é ser intolerante face à verdade objectiva e outra é ser intolerante face às opiniões, aos gostos, às perspectivas e às escolhas individuais. No primeiro caso, – em nome e em defesa da verdade – a intolerância é um bem; no segundo, é um desastre. No primeiro, é exigida em nome da dignidade; no segundo, é abominável em nome dos direitos humanos e do saber prático. No primeiro, é desejável como rigor científico; no segundo, é detestável como atitude ética e antropológica. A situação é esta: no primeiro, está em causa o pensamento; no segundo, estão em causa as pessoas e a sua liberdade de expressão.

Historicamente, a tolerância não nasceu como virtude; nasceu como controle sobre quem detinha o poder, sobre quem tinha na boca a sentença e na mão o chicote, a fim de não exercer desajustadamente a força contra os «inimigos», contra os vencidos, contra os escravos e contra os que praticavam o mal ou o crime. Só no século dezoito é que a doutrina da tolerância passou a ser uma bandeira ideológica, partidária, republicana, laica, espalhada pelos iluministas e bem patente no espírito da revolução francesa. Aliás, os iluministas pensavam que, com a difusão das luzes, os homens se tornariam justos e bons e conseguiriam libertar-se das angústias, dos terrores e dos horrores do passado. Seriam tolerantes! Foi em nome desse futuro que o iluminismo combateu tudo o que parecia irracional, supersticioso: as posições adquiridas, as vantagens hereditárias, os privilégios a favor de poucos e em prejuízo de muitos, os abusos que o poder cometia sobre os miseráveis. Em nome desse futuro combateu a crueldade da pena de morte, as abomináveis prisões medievais, a tortura. Rompeu com o mundo do dogma e da intolerância religiosa. Foi por isso que, para atacar especificamente a Igreja «intolerante», nasceu a maçonaria. Ainda hoje, no seu pendor anticlerical, alardeia o mito da intolerância; mas, quando se quer impor intolerantemente, fala de “tolerância zero”. Estes ideólogos são uns líricos! E fazem-nos crer que ser tolerante é ter de concordar com as suas intolerâncias!

A esses líricos lembro eu que foi contra os cristãos que os antigos governos pagãos se mostraram marcadamente intolerantes. As perseguições não são anedotas nem invenções! Muito mais tarde é que houve uma reviravolta. Com Constantino, a Igreja, religiosamente livre, começou a exercer o papel de “Igreja do Estado”, o que, desgraçadamente, a onerou não poucas vezes com a indesejável herança da intolerância oficial e com as contínuas intromissões do Estado na sua esfera religiosa. Na prática, virou-se o feitiço contra o feiticeiro! A verdade é que a intolerância religiosa já estava presente nos próprios órgãos do Estado... em que ela própria se tornou. Para julgar equitativamente a intolerância legal da Idade Média, que tanto escandaliza a sensibilidade moderna, é preciso ter em conta não só os princípios mas também a sua cultura e o seu direito, tão distintos dos actuais. Mesmo a Inquisição deverá entender-se sob o pecado da fraqueza da religião face às forças ambientais que eram mais poderosas que as da caridade. A intolerância política imperante fez-se sentir horrivelmente em tempos da reforma e da contra-reforma. E como não se pode anular a história, que haja tolerância e verdade na análise que dela se faz!
P. Madureira da Silva

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