quinta-feira, 18 de junho de 2009

A ILUSÃO DO CONTRADITÓRIO

Na guerra entre as normas morais – representadas pela tradição culturalmente cristã – e os gostos individuais – representados pelos atractivos e tendências –, as normas morais perdem. Postos em confronto os valores espirituais (sobretudo os éticos e os religiosos) que manifestam a excelência da consciência sobre o corpo – e os valores do corpo, materializados na satisfação dos apetites, na estética (ginásios, alimentos light, clínicas) e na preponderância do querer sobre o dever, os valores do corpo vencem. É uma guerra antiga e Nietzsche não é a personagem mais inocente neste confronto. Cabe-lhe a responsabilidade de ter dado rosto e voz às doutrinas voluntaristas e às ideologias ateias do século XIX. O «super-homem» inventado por Nietzsche não é nada um super-homem: é o mais comum e normal dos homens, que se diz possuidor de uma consciência «científica» e amoral, de uma religiosidade intimista (sem espiritualidade), sem outro sentido do bem e do mal que não seja o que ele decide que seja, sem outro sentido de vida que não seja a usufruição máxima e rápida do que o seu individualismo espevita, numa ânsia descontrolada de auto-promoção e auto-satisfação. Este super-homem voluntarista e caprichoso – nada super e muito pouco homem – tornou-se deus de si mesmo. Assumiu a configuração mitológica de Dionísio (deus do vinho, das pândegas, das orgias e do «faz o que te apetece») em oposição a Apolo (deus da inteligência e do domínio da alma sobre o corpo, do «faz o que deves»). A principal consequência desta mentalidade está patente na ilusão do contraditório. Apela-se para o social, mas vive-se o individual. Exige-se a tolerância, mas impõe-se o ponto de vista pessoal. Quer-se a dignidade, mas espevita-se a licenciosidade. E a redenção – que é a obra da libertação do mundo através da luta contra todas as servidões – põe-se na gaveta das coisas inúteis e esquisitas. Mistifica-se a ideia de pecado e não se tem em linha de conta as respectivas consequências pessoais, sociais e cósmicas. Com uma agravante: espezinha-se tudo o que seja abnegação, domínio de si, sacrifício, cedência, humildade, esforço, virtude. Hoje, mesmo que algumas destas virtudes se realizem, é com o objectivo da auto-satisfação, da auto-promoção, mais à custa dos outros do que de si mesmo. A tradicional doutrina moral sobre os vícios de que o coração humano é pródigo, foi aniquilada pelas ideologias e doutrinas sem moral que desconsideram o pecado, ironizam a verdade, alijam a responsabilidade, esfarelam a culpabilização e metem no mesmo saco o querer, o poder, o apetecer, o ser lícito, o usufruir – tudo sem hierarquia. Em vez de se pôr o acento no «bem moral», põe-se na estética, nos gostos, nos «acho’s» e no «é assim». Para haver contraditório, tem de haver pontos de vista em oposição. Acontece que a mentalidade actual não admite o contraditório por considerar aberrante qualquer postura que promova os deveres morais e se alicerce em princípios éticos. E a consequência é imparável: não se reconhece valor a qualquer juízo moral que se faça sobre os actos humanos, os comportamentos e as atitudes. Lá bem no fundo, nega-se a realidade do pecado. E é neste ponto que eu assumo o contraditório. Mesmo que se negue a realidade do pecado, continua a ser verdade que o seu elemento material é a rebelião da carne contra o espírito, das tendências vitais contra a consciência moral. Continua a ser verdade que não param de agir as duas desordens instintivas no homem: o orgulho e o desejo dos prazeres e, naturalmente, o orgulho vence. Vencendo, passam a ser considerados normais os desordenados deleites carnais e o anelo em gozá-los, numa ultrapassagem vertiginosa do natural instinto de conservação do indivíduo e da espécie. Do mesmo orgulho nasce a preguiça, desenvolve-se a luxúria e estimula-se a intemperança no comer, no beber e nas diversões. Aumenta o apetite dos bens exteriores (riqueza, fausto, luxo em geral). E tudo ganha corpo na ambição, na jactância e na presunção, descambando em ódios, impaciências, rancor, impropérios e maledicências. E tudo sem culpabilização! Assim, perde-se o bom senso...

P. Madureira da Silva

1 comentário:

  1. Lembrando a génese do pecado, esta «aula» ensina a enterrar o orgulho para dar espaço às leis da felicidade: verdade, autenticidade, responsabilidade...

    Para qualquer «professor», que bom seria ter uma «sala de aula» cheia de «alunos» empenhados em se afirmarem pela defesa do bom senso!

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